domingo, 8 de maio de 2011

Sobre Proust

Eu podia ter escrito o que se segue. Mais: gostaria de ter escrito o que se segue.

«Não sou um especialista em Proust. Só um apaixonado. Não me espanta que seja um autor tão pouco apreciado. A razão é que certos textos, como certas músicas, precisam de nos dissolver no seu corpo para que as amemos; precisam, diria — e não sei se isto vai soar bem, ou por outra, irá certamente soar mal —, que atinjam uma zona do corpo do leitor e do espírito do leitor aonde o seu próprio olho crítico não tenha já poder algum. Eu não sou capaz de olhar criticamente a obra de Marcel Proust. Falta-me distância. Casei-me com ela, fundi-me nela, perdi qualquer vestígio de autonomia. As suas palavras influenciam-me irreversivelmente. Sinto-as com uma espécie de arrepio, num encantamento absoluto. É por causa da história, ou da descrição dos pormenores, tornando visíveis, audíveis, tacteáveis ou cheiráveis as sensações que a sua memória reencontra — e é por causa da linguagem, do paradoxo, do sentido do subtil. »

Só hoje descobri este blogue, graças a um comentário deixado no excelente Rua da Abadia. Vou digeri-lo inteiro nos próximos dias, mas a primeira sensação foi de sobressalto. Embirrações parecidas (e, dentro das embirrações, as mesmas excepções — Hemingway e O Adeus às Armas, e certas passagens de Paris É Uma Festa. Dificuldades de leitura muito próximas. E de repente, a mesma pessoa que confessa que não conseguia ler O Que Diz Molero, de Dinis Machado (tal como eu), aparece-me, um mês antes, a escrever sobre Proust com a intimidade que só muitas e repetidas leituras permite.

A minha paixão por Proust e por aquele livro que é um dos amores da minha vida é antiga. Durante muito tempo conheci apenas o primeiro dos sete volumes da velha edição da Livros do Brasil: No Caminho de Swann. Tinha 17 anos. Faltavam-me os seis volumes restantes. Até aos meus 21 anos. A Vanda, amigas do Liceu desde os 12 anos, ofereceu-me um cheque-livro da livraria do Arco-Íris que pagou mais três volumes. Assim como assim, e já que estava com a mão na massa, comprei os outros três (ficas a saber, Vanda, que 3/7 da culpa por esta paixão são teus).

Os sete volumes dormiram na estante desde os meus anos, em Agosto, até Dezembro. Eu andava demasiado ocupada a ser feliz, o tempo para ler e, mais ainda, para leituras tão densas, era pouco. Mas depois, a 4 de Dezembro, no primeiro aniversário da morte de Sá Carneiro, a minha felicidade desabou como um castelo de cartas, ao som de Leaving on a Jetplane, de John Denver (e levei muitos anos, quase 20, até ser capaz de voltar a ouvir a música por ele, a aproximação máxima que conseguia era a versão dos Peter, Paul & Mary).

Foi a época mais dura da minha vida. Percebi que tinha de sobreviver, e de cabeça erguida. Impus-me a disciplina daquela leitura difícil, que tantas vezes me fazia parar, de tal maneira tantas frases faziam ricochete em coisas minhas. Comecei pelo princípio e fui por aí fora, os livros estão cheios de sublinhados e anotações à margem (só mais tarde passaria para o original francês).

A banda sonora ideal para contar a minha relação com Proust não existe, é mera ficção: a sonata de Vinteuil da obsessão de Swann durante o tempo conturbado do seu amor por Odette. Compositor e obra são ficção do romancista. Como substituição, fica este magnífico Il Faut Savoir do meu muito amado Aznavour, seguramente a música que mais tocou no meu quarto durante esse terrível mês de Dezembro de 1981. Pelas mesmas razões por que me impus a leitura de Proust: disciplina, firmeza, sobrevivência, dignidade. 

14 comentários:

  1. magnífico post sobre uma obra que me é tão querida. obrigado pela referência, pela citação, pela sintonia. até tenho medo de estragar este estado. (gosto muito da gota de ran tan plan. também gosto muito de ran tan plan propriamente dito)

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  2. Obrigada pelas suas palavras, José.
    É impossível não gostar de Ran Tan Plan, não é? Adoravelmente estúpido! :))

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  3. Há quem encontre em César Franck os sons da sonata de Vinteuil. Eu gosto dessa ideia.

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  4. mas também li que havia outras possibilidades, para além de César Frank. e essa investigação ropriamente dita é muito engraçada. um dia achei que teria encontrado o que podia perfeitamente ser a sonata (até por razões históricas) - infelizmente, perdi-a; esqueci até quem era o compositor (imperdoável), nunca mais a reencontrei...

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  5. Fauré também seria interessante, mas continuo a preferir Franck.

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  6. Espreitem aqui:

    http://blog.allmusic.com/2008/11/07/who-wrote-the-vinteuil-sonata-a-musical-mystery/

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  7. Aí está, Teresa. Impossível saber que "pequena frase" teria Proust em mente. A hipótese Saint-Saëns (via Hahn) também é muito interessante. Ainda assim, penso que são as notas da sonata de Franck as que melhor encaixam na descrição daquele amor obsessivo. Ou assim eu as ouço.

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  8. Em favor da embirração. Proust e Dinis Machado não estão no mesmo campeonato, mas ambos provocam essa superior e sublime obsessão da leitura. Nem sequer ouso ou tento comparar mas corro em defesa do Homem que conheci e do seu imaginário delirante de Malandro/Boémio/Cinéfilo as longas conversas sobre Bogart, Hammet, Boris Vian e os Filmes, GIlda...Rita e a memória do Cinema...está tudo em "O Que Diz Molero" tudo, tudo até os bancos do palhinhas e as sessões contínuas do 31 partes mais famoso do meu imaginário...a minha vida.

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  9. Paulo, inclino-me a concordar contigo.

    Abel,
    É evidente que Proust e Dinis Machado não estão no mesmo campeonato. Mas não deixa de ser curioso que quem lê Proust com toda a facilidade tenha dificuldade em passar das primeiras páginas de O Que Diz Molero. Vou tentar outra vez.

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  10. P.S. Tenho tido curiosidade de ler a tradução que Pedro Tamen fez de Proust, à qual só tenho ouvido grandes elogios. Hoje fui ao site da editora e pus-me a somar os preços dos diversos volumes. Quase cem euros para matar uma curiosidade parece-me excessivo.

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  11. A tradução de Pedro Tamen é A tradução portuguesa que vale a pena. Eu ia comprando cada volume à medida que saía, devagarinho, quase como se fosse em fascículos. Deus, que maravilha!

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  12. José e Sem-se-Ver,
    Acho que nestes tempos de crise vou continuar pela edição francesa e pela velhinha da Livros do Brasil. :)

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