Baú das relíquias — singles #10: Raggio di Luna
Acabo de lhe digitalizar a capa e sorrio a olhar para ele. Está impecável, podia ter saído hoje da loja. No verso, uma data e um nome. A data é 21 de Maio de 1979, o nome é o de quem mo ofereceu. O P. M.
Como toda a gente da minha idade, vivi até certa altura o festival da Eurovisão como um grande acontecimento. A partir dos 13 anos (idade mais provável) comecei a arrumá-lo na categoria das coisas meramente engraçadas, tendo já uma noção clara de que havia música infinitamente melhor. Mas, ainda assim, ano após ano, lá por meados de Abril, lá ficava presa ao ecrã na grande noite. Eu e três quartos do país — o quarto restante talvez não tivesse televisão. Isto até 1980, ano dos meus 20 anos, o último em que me lembro de ter visto O Festival (o artigo é eloquente). Viria a vê-lo apenas mais uma vez, dez anos depois, por ter sabido por acaso que Toto Cutugno, cuja voz e sentido de melodia amo, cantava pela Itália. E ganhou, o meu querido menino.
O primeiro festival de que guardo uma memória muito nítida é o de 1966, tinha cinco anos. A ocasião era especial, foi-me concedido assistir, a uma hora em que já deveria estar na cama. E lembro-me perfeitamente de Udo Jürgens a cantar ao piano o vencedor Merci Chérie. Os meus favoritos em cada ano, mesmo tão pequena, reflectem bem a mudança que começava a fazer-se sentir: por influência dos Beatles e de tantos conjuntos (na altura ninguém lhes chamava bandas) vindos do Reino Unido, a muito forte presença francesa começava a empalidecer. Em cada ano era inevitável: eu vibrava pela Inglaterra, e nem imaginam a fúria que tive quando Massiel (espanhola, ainda por cima!) derrotou o Congratulations de Cliff Richard. Pouco importa que eu tivesse apenas sete anos, a música já era um grande amor e eu não seria hoje a mulher de paixões que sou se não tivesse começado por ser a criança de paixões que fui.
Seja como for, lá por 1975, 1976, comecei a fartar-me das prestações britânicas no Festival. Aquilo já não me dizia nada, achava as músicas parvas. E transferi o meu apoio para as canções italianas. A de 1978, Questo Amore, é ainda hoje uma das músicas da minha vida. Não porque tenha uma qualidade extraordinária, nem sequer tem uma qualidade por aí além. É apenas por trazer consigo lembranças de uma felicidade imensa. No ano seguinte, 1979, ganhou Israel, com uma música fraquinha, básica, de receita quase garantida. Acabei a noite rouca de tanto me exasperar com as votações, a parvíssima canção espanhola a dar uma luta incompreensível, até ao fim o resultado esteve indeciso. O meu querido Estado de Israel ser batido por Espanha?! Mas era só o que faltava! Enervei-me, gritei, praguejei com os votos de cada país, as figuras que uma pessoa faz! Mas a minha preferida foi mesmo a canção italiana, este Raggio di Luna, de uns tais Matia Bazar.
Vamos lá falar com franqueza: a música é fraquinha, pronto. Sempre tive noção disso. Mas podemos ser lúcidos quanto aos reais méritos de alguma coisa ou de alguém sem que o nosso afecto seja beliscado — é o caso. O encanto da língua italiana não chega como explicação, a explicação é outra, e passa pela Primavera de 1979, por tardes supostamente de estudo em casa do P. M. que mais eram sessões de música e muita galhofa, o frasco de álcool a ter de aparecer no fim para limpar os riscos de esferográfica que eu lhe fazia no braço a cada graçola que ele me dizia. Tardes de estudo quase invariavelmente interrompidas para irmos comer um gelado à Pindô, no prédio do lado, ou para irmos aos crêpes do Pão de Açúcar da Estados Unidos da América, a cinco minutos de distância (oh tempos felizes! Eu engolia alegremente dois crêpes com gelado, chantilly e chocolate quente e era uma sílfide!), ou às livrarias do Apolo 70 e do Arco-Íris, ou a uma sessão de cinema que o capricho do momento nos fazia apetecida. Ou a uma discoteca. Por discoteca entenda-se loja de discos, evidentemente.
Nessa Primavera de 1979 o P. M. sabia que estava para aparecer à venda (era do ano anterior, mas os discos continuavam a chegar cá com grande atraso) Darkness on the Edge of Town, de Bruce Springsteen. Quase todas as tardes arranjávamos maneira de passar numa ou noutra discoteca, a ver se já tinha chegado. Nessa tarde de 21 de Maio, nem sei bem porquê, fomos dar à discoteca do Imaviz. Onde ele finalmente o encontrou. À saída, ele já com a sua preciosa compra debaixo do braço, parámos a ver a montra, bastante ecléctica. E lá estava este disco, Raggio di Luna (o Festival tinha sido no mês anterior). «Adoro aquela música!» — exclamei impulsiva, a apontar para a capa. E não houve maneira de o dissuadir de mo oferecer. Relembro agora, divertida, os tormentos que viria a passar por causa dessa generosidade dele. Lembro em especial uma certa ida à Feira do Livro, que ainda era na Avenida da Liberdade, eu sem me atrever a manifestar interesse por qualquer livro, quanto mais manuseá-lo, segura de que o passo seguinte seria ele oferecer-mo (e resignada a voltar lá noutro dia, para poder fazer compras). Nem o meu aparente desinteresse conseguiu vencer o seu empenho. Desconheço qual terá sido o critério, mas acabei por ser presenteada com O Admirável Mundo Novo, de Huxley, da querida Colecção Dois Mundos. E foi impossível recusar, claro. Está na estante por trás de mim, anda comigo há mais de trinta anos.
Preciosos, um e outro. O disco e o livro.
Preciosos, um e outro. O disco e o livro.
Caramba, e eu a achar que humberto tozzi já era mau...
ResponderEliminarQd era miúda tb via sempre o festival da Eurovisão, apesar das vergonhas que Portugal nos fazia passar :)
ResponderEliminar*
Ora seja muito bem vinda ao seu blog, mesmo não sendo! (Benvinda, claro).
ResponderEliminarMas as nossas memórias e as nossas associações sempre nos fizeram gostar de algumas coisas sem que para isso tenhamos explicação. Mas não nos basta gostar? Para quê complicar?
CMD
Espero que ande feliz. E bem disposta. E feliz, já disse feliz? :)
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