domingo, 7 de fevereiro de 2010

Baú das relíquias — singles #9: I Like You

Quando eu tinha 11, 12, 13 anos, fechava-me no quarto a seguir ao jantar e lia, lia, lia — até chegar o momento fatídico em que ouvia um severo «Tê, apaga a luz!» da minha Mãe. O primeiro de muitos, que todas as noites a história se repetia, comigo sempre a suplicar mais um bocadinho, a mendigar tempo para ler mais algumas páginas. 

Noites houve em que a minha Mãe teve de recorrer a medidas extremas como desligar o quadro eléctrico. Sempre fui filha exemplarmente obediente, as únicas transgressões eram mesmo no campo da leitura. Por a leitura ser também uma paixão dele, o meu Pai sempre foi mais indulgente nesse capítulo, fingindo não reparar na faixa de luz por baixo da porta do meu quarto a denunciar-me. Como todas as crianças, fiz as minhas asneiras. Não muitas, é certo. Mas os meus Pais cedo perceberam que o maior e mais eficaz castigo que podiam aplicar-me era a proibição de ler. Lembro-me de que, já pelos meus sete anos, se queixavam ao médico (tive uma grave doença a partir dos quatro anos, coisa a prolongar-se por largos anos, a exigir acompanhamento constante e, na fase mais aguda, análises de sangue diárias) de que, se deixassem, eu lia o dia inteiro. «Tê, larga a leitura!» deve ter sido a frase que mais ouvi em criança. E daí não sei, que também havia a exasperação da minha Mãe com a minha falta de apetite crónica. A sua maior proeza de paciência (ou desespero, por eu estar tão doente) foi levar duas horas para conseguir que eu comesse uma banana. A contar-me histórias, a encher o lavatório da casa de banho de água e Sonasol, um dos poucos detergentes da época, a pôr-me nas mãos um batedor de claras, a minha minúscula pessoa empoleirada numa cadeirinha de madeira que ainda hoje está a um cantinho da saleta e foi herdada pela Marta e pela Rita, as minhas sobrinhas. Entretida a fazer espuma com aquilo, lá ia aceitando engolir alguma coisa. Dou comigo a sorrir desta ironia. Mundo muito mal feito! A bem da tranquilidade da minha Mãe, eu deveria ter nessa época o apetite que tenho hoje. A bem da minha linha, eu deveria ter hoje por comida a mesma enorme repugnância que tinha então. E toda a gente era feliz, num mundo ideal.

Mas voltemos à música, que eu sou mulher de se dispersar muito mas de voltar sempre ao ponto de partida. Nessas noites dos meus 11, 12, 13, 14 anos em que recolhia ao quarto a seguir ao jantar para ler, havia sempre uma telefonia minúscula ligada num programa chamado Quando o Telefone Toca. Ligava-se para o programa, debitava-se uma frase relacionada com o patrocinador, previamente divulgada, e pedia-se uma canção. Eu, confesso, ouvia aquilo na esperança de apanhar músicas dos Beatles. O que apanhava, na maior parte das vezes, eram fúrias autênticas, tamanhas as piroseiras com que era brindada. Mas, honra seja feita ao programa e ao locutor, o saudoso Matos Maia, também conheci músicas e contraí paixões.

E é assim que chegamos a esta minha relíquia, que já não tenho. Algures lá por 1973, esta canção de Donovan passou muito no Quando o Telefone Toca. E eu comprei o disco numa gigantesca discoteca (loja que vende discos, as outras para mim ainda são boîtes) chamada, se a memória não me falha, Grande Feira do Disco, na Rua do Forno do Tijolo. O disco viria a desaparecer-me quando o emprestei para uma festa da Católica, em 1978. Deu-me muito trabalho encontrar novamente a canção. A capa, a mesma (e como a lembro bem!), devo-a mais uma vez ao Luís.

Ontem, num óptimo almoço de taradinhos por anos 60 em geral e por Beatles em particular, falou-se muito desta música. E do álbum a que ela pertence. Que é este: Cosmic Wheels. De Donovan, o trovador de Atlantis. O disco é de 1973, tinha eu 12-13 anos.


9 comentários:

  1. Estas recordações, não só da música, como do resto, são as melhores... Quando leio coisas destas ponho-me simplesmente a pensar como o mundo evoluiu (?) desde então...

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  2. Tem graça, também me lembro de ouvir o Donovan no Quando o Telefone toca...

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  3. Wednesday,
    Mudou muito, muito, muito.
    Mas há qualquer coisa enternecedora no facto de estar colada a um programa de rádio na esperança de poder ouvir coisas que nos são muito queridas. Agora está tudo ao alcance de um clique, de um download, de um pagamento com cartão de crédito.
    Naquele tempo sonhávamos, desejávamos e esperávamos :)

    Gi,
    E aposto que a música dele que mais ouviste lá foi Atlantis :)

    Beijos às duas!

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  4. Gi,
    Era inevitável. E é uma grande música, não é? :-)

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  5. Bom... que surpresa! Confesso que de vez em quando tenho vindo espreitar na expectativa de ver o D.P.L por cá... Como já referi há dias, aos 13 anos, com as adolescentes lá do liceu de Passos Manuel (secção de Sintra), tentámos formar um clube de fãs do Donovan... era aquele arzinho dele e a voz doce a cativar-nos.Aquele nariz arrebitado e os cabelo aos caracóis...
    Também vou remexer no vinil antigo, talvez encontre um ou outro LP para te surpreender. Espero que não tenham desaparecido após diversas mudanças e andanças.

    (e até gostava de temas mais 'lamechas' como aquele «when the sun/goes to bed/ that's the time/ you raise your head»... que quase dava para colocar como adivinha):)

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  6. Teresa,
    Pois, Donovan já te estava prometido, eu não podia faltar! :)
    Espero que encontres os discos, que hoje são preciosidades.

    Vê este post do Ié-Ié e os comentários muito interessantes que lá apareceram:

    http://guedelhudos.blogspot.com/2010/02/donovan-cosmic-wheels.html

    Beijo!

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  7. Já vi e deliciei-me com os comentários. Quanto ao espólio cá de casa, posso adiantar que encontrei 2 LPs (havia mais, mas as mudanças e os empréstimos dos tempos de juventude encarregam-se do sumiço). Logo que haja tempo, digitalizo-os e faço um post:)

    Bjinho

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