domingo, 16 de agosto de 2009

A noção da vírgula, ou da salada... ou whatever

Faz hoje 109 anos que o meu idolatrado Eça morreu.

Se fui de propósito a Paris para estar presente no centenário da morte de Oscar Wilde, três meses depois (sim, ambos morreram em Paris no mesmo ano), acham que não teria de homenagear devidamente o meu muito querido Eça?

Tentei, sim. Até tinha um plano. Andei indecisa entre ir jantar ao Grémio Literário ou ao Círculo Eça de Queiroz (continuo a sonhar ser membro dele).

Mas Messy interpôs-se. Messy ficou muito doente e teve de ser operada no dia em que se cumpria o centenário da morte do nosso Eça (Messy também gostava muito dele, se bem que preferisse a pureza da escrita do Padre António Vieira, Messy era uma gatinha de gosto literário requintado).

A asneira foi minha. Cancelei a mesa no Círculo Eça de Queiroz, fui buscar Messy recém-operada e levei-a para casa. Tive uma noite que não desejo a ninguém, minha Messy sem forças, a esvair-se no meu colo. Na manhã seguinte (não falemos do pesadelo que foi aquela noite) voltou ao veterinário, ao extraordinário Dr. Joaquim Henriques, que foi suficientemente generoso para se abster de me apontar um dedo acusador (ela devia ter ficado lá, eu achei que ficaria melhor comigo e desisti de homenagear Eça nessa noite do centenário da sua morte, 16 de Agosto de 2000).

Não me arrependo de não ter homenageado o meu querido Eça como teria querido nessa data. Messy pesava mais na balança dos meus afectos. Messy era a minha gatinha, e nem toda a minha verbosidade seria capaz de contar a que ponto era especial. ÚNICA.

A saudade de Messy dói e sabe bem ao mesmo tempo. Messy é a saudade que eu gosto de ter, tanto que às vezes me engano e troco os nomes, e chamo Messy a Agri. Agri não se ofende, também ela tenta lidar com a perda.

Mas já me desviei do objectivo, coisa mais do que habitual. O que queria contar é uma história que muito nos fez rir a mim e ao Manel, há perto de três anos. Foi no blóguio do Liceu, que é a menina dos meus olhos (escusam de lá ir, há largos meses que o fechei, há demasiados retratos, há filmes, e no nosso grupo há pessoas conhecidas, agora só se tem acesso por convite). Naquele tempo, grande parte da graça daquele blóguio (expressão do António que pegou e ficou) estava no facto de toda a gente passar a vida a comentar com identidades inventadas, cada uma mais tonta do que a anterior, e de nos deitarmos a adivinhar quem poderia ser o gracioso. Ora em tempos, discutindo com o Manel a possível identidade de um interveniente sob pseudónimo, rejeitei de imediato um alvitre dele – não podia ser esse o comentador. E porquê?, queria ele saber. «Porque não tem a noção da vírgula!», foi a minha resposta triunfante.

O Manel escangalhou-se a rir, «ter a noção da vírgula» passou a ser entre nós um conceito lapidar. Mas a frase ficou a remoer-me. Aquilo era demasiado bom para ter saído da minha cabecinha. Onde teria eu ouvido ou lido qualquer coisa semelhante? E só me lembrava de... salada. Era do grande Eça de Queiroz, seguramente.

Encontrei num ápice. É dessa obra imortal que é A Cidade e as Serras, que a cada releitura me é mais querida, no fim, quando Zé Fernandes volta a Paris. Eis o excerto:

«(...)

— Eh, Fernandes!

O Grão-Duque! O belo Grão-Duque, de jaquetão alvadio e chapéu tirolês cor de mel! Apertei com gratidão reverente a mão do Príncipe, que me reconhecera.

— E Jacinto? Em Paris?...

Contei Tormes, a serra, o rejuvenescimento do nosso amigo entre a Natureza, a minha doce prima, e os bravos pequenos, que ele trazia às cavaleiras. O Grão-Duque encolheu os ombros, desolado:

— Ó lá, lá, lá!... Peuh! Casado, na aldeia, com filharada... Homem perdido! Ora não há!... E um rapaz útil! Que nos divertia, e tinha gosto! Aquele jantar cor-de-rosa foi uma festa linda... Não se fez, não se tornou a fazer nada tão brilhante em Paris... E Madame de Oriol... Ainda há dias a vi no Palácio de Gelo... Potável, mulher ainda muito potável... Não é todavia o meu género... adocicada, leitosa, pomadada, neve à la vanille... Ora esse Jacinto!...

— E vossa Alteza, em Paris, com demora?

O formidável homem baixou a face, franzida e confidencial:

— Nenhuma. Paris não se aguenta... está estragado, positivamente estragado... Nem se come! Agora é o Ernest, da Praça Gailon, o Ernest, que era maître-d'hotel do Maire... Já lá comeu? Um horror. Tudo é o Ernest, agora! Onde se come? No Ernest. Qual! Ainda esta manhã lá almocei... Um horror! Uma salada Chambord... palhada! Não tem a noção da salada! Paris foi! Teatros, uma estopada. Mulheres, hui! Lambidas todas. Não há nada!
Ainda assim, num dos teatritos de Montmartre, na Roulotte, está uma revista, que se vê: Para cá as mulheres! – engraçada, bem despida... A Celestine tem uma cantiga, meio sentimental, meio porca, o Amor no Water-Closet, que diverte, tem topete... Onde está, Fernandes?

— No Grand-Hotel, meu senhor.

— Que barraca!... E o seu Rei sempre bom?

Curvei a cabeça:

— Sua Majestade, bem.

— Estimo! Pois, Fernandes, tive prazer... Esse Jacinto é que me desola! Vá ver a Revista... Boas pernas, a Celestine... E tem graça o tal Amor no Water-Closet

Ai, a maravilhosa adjectivação de Eça! «Potável, mulher ainda muito potável!»

Um génio.

Banda sonora: Bach — Cello Suite No. 1 — Prelude — Yo-Yo Ma

2 comentários:

  1. E o "tem topete"? que delícia de palavra... Há termos que se perdem não é? E é pena. Topete é mesmo fantástico, diria mesmo supimpa, que é um de que também gosto.

    Um dia destes ponho-me a reler Eça

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  2. TCL,
    Eça é único! E a adjectivação, a maravilhosa adjectivação!!! "Pomadada", ainda sobre Mme. de Oriol é tão eloquente que nem é preciso dizer mais nada.

    Relê, vai ser um exercício do mais requintado prazer. Tens as Notas Contemporâneas? Lê dois breves artigos em que ele está em toda a sua verve (outra palavra que se perdeu): O Marquesinho de Blanford e A Inglaterra e a França Julgadas por um Inglês (o inglês é o seu cão D. José, que escreve uma carta à gata Pussy, que ficou em Inglaterra, no tempo em que ele era cônsul em Bristol). Fabulosos!!!!

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