Gente Vulgar, ou a perda
Revi hoje, finalmente, o filme que foi a estreia de Robert Redford como realizador em 1980 e que ganhou quatro Oscars, quatro dos mais nobres: melhor realização, melhor filme, melhor argumento adaptado e melhor actor secundário.
Tinha-o visto uma única vez, quando estreou, Setembro ou talvez já Outubro de 1981, tinha eu 21 anos acabados de cumprir, e foi um coice poderoso no estômago. Vi-o com o M. no Berna, numa época que foi de grande felicidade na minha vida. Hoje, na véspera de só me faltar um ano para os 50 anos, em plena maturidade, atingiu-me ainda mais em cheio.
Atingiu-me tão em cheio que por várias vezes parei a imagem para pensar, para digerir, para ir buscar Proust à estante. A densidade do filme é tão grande que fiquei espantada quando vi a duração: 119 minutos. Pareceu-me coisa de horas e horas, tantas imagens me trouxe à memória.
Gente Vulgar conta a história de como pai, mãe e filho lidam com a morte do irmão mais velho, que morreu num acidente. O filho que sobrevive, Timothy Hutton (ganhou o Oscar), tenta lidar também, agravadamente, com a culpa, e percebemos algures que tentou suicidar-se a seguir. Com tal temática, fácil seria descarrilar para o melodrama e a lágrima fácil. Tal não acontece, a contenção (maravilhosamente desempenhada por Mary Tyler Moore, que chegamos a detestar) é admirável. Donald Sutherland, marido e pai (de caminho é o pai de Kiefer Sutherland, de 24) tem um dos papéis da sua vida. Além de ter, evidentemente, uma das vozes mais avassaladoras que conheço, só a de Jeremy Irons a bate.
Lembrei-me da Graça. Lembrei-me muito da Graça. Conheci a Graça no Inverno de 1992, quando entrei para um grupo de reflexão sobre a Bíblia, na Igreja de S. João de Deus. Cedo se criaram afinidades. Quase sempre, a seguir às reuniões, eu, a Graça e a Claudine (francesa radicada em Portugal havia muitos anos, e que me me emprestou Renan) acabávamos em frente, na Mexicana, a tomar um café e a prolongar a conversa.
A Graça teria então, mais coisa menos coisa, a idade que eu tenho agora. Tinha-se juntado àquele grupo para tentar aceitar aquela que, acho, só pode ser a maior dor desta vida: a perda de um filho.
O Filipe tinha 20 anos e era um miúdo lindo (claro que vi muitos retratos). O Filipe era um miúdo exemplar, andava no Técnico e tinha notas fantásticas. O Filipe nem sequer fumava, o Filipe nem sequer bebia, tirando talvez, aqui e ali, uma cerveja. O Filipe, evidentemente, menos ainda tinha contacto com drogas. O Filipe tinha muitos amigos e saía à noite, como é normal. Nem era de voltar muito tarde, mas a Graça (mãe é mãe) estava sempre alerta. Naquela noite de sexta-feira a Graça ouviu-o chegar, falaram um com o outro, ela do quarto, a querer ir arranjar-lhe um copo de leite morno, ele do corredor, a dizer que não, que não lhe apetecia nada, só queria dormir, e que no dia seguinte tinha combinado ir estudar com um colega, pediu-lhe para o acordar às dez horas.
Às dez horas da manhã, quando a Graça entrou no quarto para o acordar, o Filipe estava morto. O lindo miúdo de apenas 20 anos e de vida regrada tinha morrido sozinho de ataque cardíaco que nenhum médico soube explicar. Foi por isso que eu e a Graça nos conhecemos, ela tentava desesperadamente encontrar uma explicação divina para aquela tremenda injustiça. De caminho, contou-me que o seu casamento de vinte e tal anos estava a vacilar, foi então que eu soube que grande parte dos casamentos não sobrevive mais de um ano à perda de um filho (há estatísticas).
Tudo isso está em Gente Vulgar. De maneira diferente, claro, porque cada história é uma história. O marido da Graça era bem a personagem de Mary Tyler Moore, e a Graça culpava-o por isso.
De caminho percebi também hoje, na véspera dos meus 49 anos, que talvez o meu caminho tivesse sido mais suave se não tivesse a mania de resolver tudo sozinha. Poucos meses depois de ter visto o filme, um psiquiatra talvez tivesse podido ajudar-me muito. Cheguei lá. Mas não foi fácil, nada fácil. E pedir ajuda não é vergonha para ninguém, pois não?
Tinha-o visto uma única vez, quando estreou, Setembro ou talvez já Outubro de 1981, tinha eu 21 anos acabados de cumprir, e foi um coice poderoso no estômago. Vi-o com o M. no Berna, numa época que foi de grande felicidade na minha vida. Hoje, na véspera de só me faltar um ano para os 50 anos, em plena maturidade, atingiu-me ainda mais em cheio.
Atingiu-me tão em cheio que por várias vezes parei a imagem para pensar, para digerir, para ir buscar Proust à estante. A densidade do filme é tão grande que fiquei espantada quando vi a duração: 119 minutos. Pareceu-me coisa de horas e horas, tantas imagens me trouxe à memória.
Gente Vulgar conta a história de como pai, mãe e filho lidam com a morte do irmão mais velho, que morreu num acidente. O filho que sobrevive, Timothy Hutton (ganhou o Oscar), tenta lidar também, agravadamente, com a culpa, e percebemos algures que tentou suicidar-se a seguir. Com tal temática, fácil seria descarrilar para o melodrama e a lágrima fácil. Tal não acontece, a contenção (maravilhosamente desempenhada por Mary Tyler Moore, que chegamos a detestar) é admirável. Donald Sutherland, marido e pai (de caminho é o pai de Kiefer Sutherland, de 24) tem um dos papéis da sua vida. Além de ter, evidentemente, uma das vozes mais avassaladoras que conheço, só a de Jeremy Irons a bate.
Lembrei-me da Graça. Lembrei-me muito da Graça. Conheci a Graça no Inverno de 1992, quando entrei para um grupo de reflexão sobre a Bíblia, na Igreja de S. João de Deus. Cedo se criaram afinidades. Quase sempre, a seguir às reuniões, eu, a Graça e a Claudine (francesa radicada em Portugal havia muitos anos, e que me me emprestou Renan) acabávamos em frente, na Mexicana, a tomar um café e a prolongar a conversa.
A Graça teria então, mais coisa menos coisa, a idade que eu tenho agora. Tinha-se juntado àquele grupo para tentar aceitar aquela que, acho, só pode ser a maior dor desta vida: a perda de um filho.
O Filipe tinha 20 anos e era um miúdo lindo (claro que vi muitos retratos). O Filipe era um miúdo exemplar, andava no Técnico e tinha notas fantásticas. O Filipe nem sequer fumava, o Filipe nem sequer bebia, tirando talvez, aqui e ali, uma cerveja. O Filipe, evidentemente, menos ainda tinha contacto com drogas. O Filipe tinha muitos amigos e saía à noite, como é normal. Nem era de voltar muito tarde, mas a Graça (mãe é mãe) estava sempre alerta. Naquela noite de sexta-feira a Graça ouviu-o chegar, falaram um com o outro, ela do quarto, a querer ir arranjar-lhe um copo de leite morno, ele do corredor, a dizer que não, que não lhe apetecia nada, só queria dormir, e que no dia seguinte tinha combinado ir estudar com um colega, pediu-lhe para o acordar às dez horas.
Às dez horas da manhã, quando a Graça entrou no quarto para o acordar, o Filipe estava morto. O lindo miúdo de apenas 20 anos e de vida regrada tinha morrido sozinho de ataque cardíaco que nenhum médico soube explicar. Foi por isso que eu e a Graça nos conhecemos, ela tentava desesperadamente encontrar uma explicação divina para aquela tremenda injustiça. De caminho, contou-me que o seu casamento de vinte e tal anos estava a vacilar, foi então que eu soube que grande parte dos casamentos não sobrevive mais de um ano à perda de um filho (há estatísticas).
Tudo isso está em Gente Vulgar. De maneira diferente, claro, porque cada história é uma história. O marido da Graça era bem a personagem de Mary Tyler Moore, e a Graça culpava-o por isso.
De caminho percebi também hoje, na véspera dos meus 49 anos, que talvez o meu caminho tivesse sido mais suave se não tivesse a mania de resolver tudo sozinha. Poucos meses depois de ter visto o filme, um psiquiatra talvez tivesse podido ajudar-me muito. Cheguei lá. Mas não foi fácil, nada fácil. E pedir ajuda não é vergonha para ninguém, pois não?
A cena final de Gente Vulgar (Ordinary People).
Querida Teresa,
ResponderEliminarnão, pedir ajuda não é vergonha mas é difícil.
quando se pede é pressuposto receber... e é tão difícil saber receber!
pelo menos para pessoas como nós (atrevo-me a dizer isto), que gostamos muito de dar.
vi este filme no cinema logo que estreou. fartei-me de chorar na cena final...
48 for ever!!!
beijo
Kuska
Querida Kuska,
ResponderEliminarTocou num ponto muito importante: saber receber. Nem sempre é fácil, principalmente quando se está mais habituado a dar. Como nós, sim.
Mas é dando que se recebe, não é?
Tal como na oração de S. Francisco de Assis...
48 forever? Está enganada! Nós temos 35! FOREVER! :)
«Thirty-five is a very attractive age. London society is full of women of the very highest birth who have, of their own free choice, remained thirty-five for years. Lady Dumbleton is an instance in point. To my own knowledge she has been thirty-five ever since she arrived at the age of fourty, which was many years ago now.»
Do meu adorado Oscar Wilde, em The Importance of Being Earnest, 1885
Beijo!
35 FOREVER!
ResponderEliminar(musiquinha:Forever Young)
Kuska
xxx
Como eu percebo este sentir...
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