Entrada da semana, por Luís Mira
No blogue Ié-Ié, de LT
MÃOS RIGOROSAMENTE VIGIADAS
It’s four in the morning, the end of July, I’m writing you now just to say that you’re fine…!
Há muitos, muitos anos atrás a minha masculinidade foi posta em causa pelos meus amigos, por culpa do Leonard Cohen…
Eu explico-me melhor…
Naqueles tempos (finais dos anos sessenta…) era habitual organizarem-se as festinhas de Sábado à tarde nas caves, sótãos ou garagens de amigos. As mães tratavam dos sumos, das sandes e dos bolinhos secos, arrebanhavam-se umas miúdas amigas e amigas de amigas e montava-se a festa…
A estratégia era começar por agitar a malta, e por isso era habitual serem os Creedence, os Doors ou os Ten Years After os primeiros a saltar para arena. Mas quando se punha Leonard Cohen no gira-discos (ou em fita pré-gravada, como era habitual) a mensagem de código estava dada: reduziam-se ao máximo as fontes de luz, as persianas desciam para lá do mínimo imposto pelas mães e sabíamos todos que era chegada à hora do “apertanço”, tacitamente aceite ou deitando-se o barro à parede, que depois se veria…
Para todos menos para mim, que sempre me recusei a utilizar o Cohen para essas operações. Ficava sentado de pernas estendidas a contemplar o vazio (já na altura…) e a beber sofregamente essa música que parecia surgir das brumas e das sombras. Enfeitiçado por aquela voz, aquele tom único do dedilhar da viola. E nem o facto de só a muito esforço ir conseguindo desbravar o sentido daquelas letras me preocupava minimamente. Aquele som bastava-me, tal como me bastava o som de muitas canções irlandesas cujo dialecto próprio as tornava, para mim, absolutamente intraduzíveis. Ou como me bastaria, muitos anos mais tarde, o mistério das vozes búlgaras…
Em boa verdade, não conseguia ouvir Cohen de outra maneira, o que dava azo a alguns comentários sarcásticos por parte do resto da maralha. Não que não me soubesse bem ouvi-lo com uma boa companhia ao lado… Mas com mãos rigorosamente vigiadas. Uma simples festa no cabelo seria mais que suficiente…
Quarenta anos se passaram e eu não mudei em nada. Continuo sentado no meu lugar a escutar. À minha volta as pessoas agitam-se. Há um bambolear de ancas, pezinhos que se mexem… Palminhas, gritinhos estridentes, braços esvoaçando pelo ar em sinal de grande satisfação…. E os antigos isqueiros na escuridão são agora substituídos pelos telemóveis e pelos irritantes flashes das modernas máquinas de filmar/fotografar. Pobre Leonard!
LC faz parte daquele muito reduzido grupo de pessoas que são absolutamente indispensáveis na minha vida, e cujo desaparecimento, um dia, me deixará um profundo vazio. Como aqueles Amigos que, estando longe, estão sempre bem dentro de nós, mesmo quando damos a sensação de os acolher sem grande afectividade. Chorarei, com certeza, no dia em que partir...
E durante muito tempo se pensou que LC tinha, de facto, partido. Não da vida, porque o sabíamos ocupado com outras coisas. Mas das lides… Ao ponto de, a determinada altura, eu próprio ter dado comigo a imaginar a sedutora teoria de que Cohen, esse homem de palavras, se tinha despedido de nós com um instrumental: o belíssimo “Tacoma Trailer”, última faixa de “The Future”. Como se a sua voz se tivesse desvanecido no piano/cravo e o pudéssemos imaginar de costas a sair de cena pela estrada fora, como no final de um filme do Charlot. É que entre “The Future” (1992) e “Ten New Songs” (2001) passaram nove anos, uma eternidade que nunca antes se tinha verificado entre discos.
Mas ainda bem que a minha brilhante teoria saiu furada. Tanto “Ten New Songs” como “Dear Heather” são bons discos - talvez mais aquele do que este – embora não cheguem aos calcanhares das minhas jóias da coroa, que são os três primeiros. Os seus críticos acusaram LC de se ter deixado manietar pelas mulheres (Sharon Robison no primeiro caso, Anjani Thomas no segundo), como já antes o fora por Phil Spector no “Death of a Ladies’ Man”. E de ter deixado a sua música ser invadida por uma batida jazzy de elevador e por coros femininos delicodoces. Mas esqueceram-se de duas coisas: que manietado pelas “ladies” sempre ele o fora; e que magníficas vozes femininas existem desde o seu primeiro disco, nesse longínquo ano de 1967. Muito antes dos tempos da Jennifer Warnes…
Se as minhas contas não falham, é a quarta vez que LC se apresenta em Portugal. Cascais primeiro, depois no Coliseu nos finais dos anos oitenta e no ano passado em Algés. Só este último falhei, porque valores mais alto se levantaram.
Dos dois primeiros concertos guardo a excelente memória de um LC em grande forma e de uma muito ligeira e agradável tonalidade “Country” dada a muitas das canções dos primeiros tempos, como se Cohen se tivesse lembrado que foi precisamente num grupo “Country” – os “Buckskin Boys” – que começou a sua aventura musical. Ainda andei, na altura, à procura de “discos pirata” que o tivessem captado ao vivo nessa fase, mas não encontrei nada, embora essa batida se sinta de passagem em algumas músicas do documentário da BBC “Songs From The Life of Leonard Cogen” (1988), que teve edição em vídeo entre nós.
Para o concerto de ontem, as minhas expectativas eram muito baixas. Bastava-me ter visto que o recente “Live in London” tem apenas cinco músicas (num total de vinte e seis…) anteriores a “New Skin….” para ter percebido que não faço parte do “público alvo” deste espectáculo…
O que é que eu hei-de dizer…? Que o concerto seguiu, quase na integra, o alinhamento do de Londres? Que esteve a milhas dos dois concertos anteriores que tinha visto? Que a voz de Cohen, lá do alto dos seus quase 75 anos, já não está, propriamente, “like it was before”? Que as tais vozes femininas nem sempre me apareceram tão afinadinhas como se poderia esperar? Que os seis músicos que o acompanharam me pareceram competentes mas, por vezes, demasiado exuberantes (mas havia que fazer descansar a voz de LC…)? Que algumas canções foram completamente assassinadas (“Suzanne”, por exemplo …)? Que o Pavilhão Atlântico não é local onde mais desejaríamos assistir a um concerto de LC? Que os urros da assistência me irritaram solenemente? Mas não sejamos assim tão derrotistas, porque momentos bons também os houve: ver LC em tão boa fora, aos saltinhos pelo palco; “Tower of Song”, com o coro a funcionar na perfeição, em especial a menina da boina com os cabelos (des)cuidadamente espalhados pela face, que também toca harpa; “Take This Waltz”; “Boogey Street”, mas aqui os créditos vão, inteirinhos, para a excelente voz de Sharon Robison.
Mas, em boa verdade, borrifo-me em tudo isso. O que eu queria mesmo era poder rever LC, antes de morrermos os dois… E não posso, egoisticamente, deixar de reconhecer que foi bom que tivessem continuado na penumbra, e não assim devassadas em público, algumas das pérolas mais escondidas da minha especial predilecção: “The Stranger Song”, “One of Us Cant Not be Wrong”, “The Old Revolution”, “Why Don’t You Try”, cujo final é o melhor pedaço instrumental da obra de Cohen, para além da referida “Tacoma Trailer”; “If it Be Your Will”, “The Guests” …
E sabe tão bem ver Leonard Cohen …
I guess that I’ll miss you, Leonard, e por isso vou ter de ser muito mauzinho… Desejo que, algures, um produtor, um manager ou um simples contabilista te volte a ir à carteira e te obrigue a voltar à estrada. Sei bem que só assim poderei ter o prazer de te rever…
Not for just an hour
Not for just a day
Not for just a year
But always
Sincerely,
Luís Mira
PS:
Nestes tristes tempos, já nem sequer os bilhetes dos espectáculos têm a personalidade dos do antigamente...!
P.S. meu: Pois não Luís, pois não!
Há muitos, muitos anos atrás a minha masculinidade foi posta em causa pelos meus amigos, por culpa do Leonard Cohen…
Eu explico-me melhor…
Naqueles tempos (finais dos anos sessenta…) era habitual organizarem-se as festinhas de Sábado à tarde nas caves, sótãos ou garagens de amigos. As mães tratavam dos sumos, das sandes e dos bolinhos secos, arrebanhavam-se umas miúdas amigas e amigas de amigas e montava-se a festa…
A estratégia era começar por agitar a malta, e por isso era habitual serem os Creedence, os Doors ou os Ten Years After os primeiros a saltar para arena. Mas quando se punha Leonard Cohen no gira-discos (ou em fita pré-gravada, como era habitual) a mensagem de código estava dada: reduziam-se ao máximo as fontes de luz, as persianas desciam para lá do mínimo imposto pelas mães e sabíamos todos que era chegada à hora do “apertanço”, tacitamente aceite ou deitando-se o barro à parede, que depois se veria…
Para todos menos para mim, que sempre me recusei a utilizar o Cohen para essas operações. Ficava sentado de pernas estendidas a contemplar o vazio (já na altura…) e a beber sofregamente essa música que parecia surgir das brumas e das sombras. Enfeitiçado por aquela voz, aquele tom único do dedilhar da viola. E nem o facto de só a muito esforço ir conseguindo desbravar o sentido daquelas letras me preocupava minimamente. Aquele som bastava-me, tal como me bastava o som de muitas canções irlandesas cujo dialecto próprio as tornava, para mim, absolutamente intraduzíveis. Ou como me bastaria, muitos anos mais tarde, o mistério das vozes búlgaras…
Em boa verdade, não conseguia ouvir Cohen de outra maneira, o que dava azo a alguns comentários sarcásticos por parte do resto da maralha. Não que não me soubesse bem ouvi-lo com uma boa companhia ao lado… Mas com mãos rigorosamente vigiadas. Uma simples festa no cabelo seria mais que suficiente…
Quarenta anos se passaram e eu não mudei em nada. Continuo sentado no meu lugar a escutar. À minha volta as pessoas agitam-se. Há um bambolear de ancas, pezinhos que se mexem… Palminhas, gritinhos estridentes, braços esvoaçando pelo ar em sinal de grande satisfação…. E os antigos isqueiros na escuridão são agora substituídos pelos telemóveis e pelos irritantes flashes das modernas máquinas de filmar/fotografar. Pobre Leonard!
LC faz parte daquele muito reduzido grupo de pessoas que são absolutamente indispensáveis na minha vida, e cujo desaparecimento, um dia, me deixará um profundo vazio. Como aqueles Amigos que, estando longe, estão sempre bem dentro de nós, mesmo quando damos a sensação de os acolher sem grande afectividade. Chorarei, com certeza, no dia em que partir...
E durante muito tempo se pensou que LC tinha, de facto, partido. Não da vida, porque o sabíamos ocupado com outras coisas. Mas das lides… Ao ponto de, a determinada altura, eu próprio ter dado comigo a imaginar a sedutora teoria de que Cohen, esse homem de palavras, se tinha despedido de nós com um instrumental: o belíssimo “Tacoma Trailer”, última faixa de “The Future”. Como se a sua voz se tivesse desvanecido no piano/cravo e o pudéssemos imaginar de costas a sair de cena pela estrada fora, como no final de um filme do Charlot. É que entre “The Future” (1992) e “Ten New Songs” (2001) passaram nove anos, uma eternidade que nunca antes se tinha verificado entre discos.
Mas ainda bem que a minha brilhante teoria saiu furada. Tanto “Ten New Songs” como “Dear Heather” são bons discos - talvez mais aquele do que este – embora não cheguem aos calcanhares das minhas jóias da coroa, que são os três primeiros. Os seus críticos acusaram LC de se ter deixado manietar pelas mulheres (Sharon Robison no primeiro caso, Anjani Thomas no segundo), como já antes o fora por Phil Spector no “Death of a Ladies’ Man”. E de ter deixado a sua música ser invadida por uma batida jazzy de elevador e por coros femininos delicodoces. Mas esqueceram-se de duas coisas: que manietado pelas “ladies” sempre ele o fora; e que magníficas vozes femininas existem desde o seu primeiro disco, nesse longínquo ano de 1967. Muito antes dos tempos da Jennifer Warnes…
Se as minhas contas não falham, é a quarta vez que LC se apresenta em Portugal. Cascais primeiro, depois no Coliseu nos finais dos anos oitenta e no ano passado em Algés. Só este último falhei, porque valores mais alto se levantaram.
Dos dois primeiros concertos guardo a excelente memória de um LC em grande forma e de uma muito ligeira e agradável tonalidade “Country” dada a muitas das canções dos primeiros tempos, como se Cohen se tivesse lembrado que foi precisamente num grupo “Country” – os “Buckskin Boys” – que começou a sua aventura musical. Ainda andei, na altura, à procura de “discos pirata” que o tivessem captado ao vivo nessa fase, mas não encontrei nada, embora essa batida se sinta de passagem em algumas músicas do documentário da BBC “Songs From The Life of Leonard Cogen” (1988), que teve edição em vídeo entre nós.
Para o concerto de ontem, as minhas expectativas eram muito baixas. Bastava-me ter visto que o recente “Live in London” tem apenas cinco músicas (num total de vinte e seis…) anteriores a “New Skin….” para ter percebido que não faço parte do “público alvo” deste espectáculo…
O que é que eu hei-de dizer…? Que o concerto seguiu, quase na integra, o alinhamento do de Londres? Que esteve a milhas dos dois concertos anteriores que tinha visto? Que a voz de Cohen, lá do alto dos seus quase 75 anos, já não está, propriamente, “like it was before”? Que as tais vozes femininas nem sempre me apareceram tão afinadinhas como se poderia esperar? Que os seis músicos que o acompanharam me pareceram competentes mas, por vezes, demasiado exuberantes (mas havia que fazer descansar a voz de LC…)? Que algumas canções foram completamente assassinadas (“Suzanne”, por exemplo …)? Que o Pavilhão Atlântico não é local onde mais desejaríamos assistir a um concerto de LC? Que os urros da assistência me irritaram solenemente? Mas não sejamos assim tão derrotistas, porque momentos bons também os houve: ver LC em tão boa fora, aos saltinhos pelo palco; “Tower of Song”, com o coro a funcionar na perfeição, em especial a menina da boina com os cabelos (des)cuidadamente espalhados pela face, que também toca harpa; “Take This Waltz”; “Boogey Street”, mas aqui os créditos vão, inteirinhos, para a excelente voz de Sharon Robison.
Mas, em boa verdade, borrifo-me em tudo isso. O que eu queria mesmo era poder rever LC, antes de morrermos os dois… E não posso, egoisticamente, deixar de reconhecer que foi bom que tivessem continuado na penumbra, e não assim devassadas em público, algumas das pérolas mais escondidas da minha especial predilecção: “The Stranger Song”, “One of Us Cant Not be Wrong”, “The Old Revolution”, “Why Don’t You Try”, cujo final é o melhor pedaço instrumental da obra de Cohen, para além da referida “Tacoma Trailer”; “If it Be Your Will”, “The Guests” …
E sabe tão bem ver Leonard Cohen …
I guess that I’ll miss you, Leonard, e por isso vou ter de ser muito mauzinho… Desejo que, algures, um produtor, um manager ou um simples contabilista te volte a ir à carteira e te obrigue a voltar à estrada. Sei bem que só assim poderei ter o prazer de te rever…
Not for just an hour
Not for just a day
Not for just a year
But always
Sincerely,
Luís Mira
PS:
Nestes tristes tempos, já nem sequer os bilhetes dos espectáculos têm a personalidade dos do antigamente...!
P.S. meu: Pois não Luís, pois não!
Sim, adoro este Senhor. Não, não consegui ir.
ResponderEliminarLC, Aznavour, J. Irons... Isto é muito gosto em comum. Tu para de nadar na minha piscina!
;)
beijos às duas
bom todos os dias!
ResponderEliminar(mais um digno representante do signo virgem, Teresa...será
complot?!)
beijo
Kuska
Já agora...vai sair algo em Outubro que vai certamente alegrar muita gente...(Olá Teresa)...fica aqui o link:
ResponderEliminarhttp://www.leonardcohenforum.com/viewtopic.php?f=3&t=16895
ps: Eu também vou ficar contente claro... :-)