O fato roxo do Vítor
Há muitos, muitos anos, no tempo em que os animais falavam... a história bem podia começar assim, porque data dos nossos treze e catorze anos. Como tal, só as pessoas mais próximas da nossa idade saberão imediatamente do que estou a falar.
Jeans em Portugal eram um luxo, eram coisa difícil de arranjar. Felizmente havia sempre um primo mais velho, um tio, fosse lá quem fosse, a ir a Londres e a trazer-nos esses objectos de cobiça, na época ainda vagamente pecaminosos. Só depois do 25 de Abril começou a aparecer alguma coisa decentemente à altura do conceito, e estávamos tremendamente limitados em matéria de marcas. Começaram a chegar cá umas Lois (feitas em Espanha, aliás até me parece lembrar um touro no logótipo), com muita sorte, mesmo muita sorte, lá se arranjavam umas Wrangler ou umas Lee, depois era só rezar fervorosamente para que houvesse o nosso número. Eu era uma desgraçada: uma trinca-espinhas baixinha e com uma cintura impossível, só me apareciam modelos em que caberiam duas como eu. Para terem uma ideia, as primeiras Levi's Strauss que tive foram compradas em 1977, tinha acabado de fazer dezassete anos e de entrar para a Universidade. Ainda nem estavam nas lojas, foi a minha amiga Clara que descobriu o importador, fui comprá-las a um quarto andar da Rua de D. Estefânia. Custaram o escândalo de 1350$00 (coisa de seis euros e meio, é favor não rir), o meu Pai fartou-se de resmungar, mas lá abriu os cordões à bolsa. Um pullover de bom lambswool da Sidney custava menos de metade. Um de caxemira custava à volta de um conto de réis no Pestana & Brito, à época uma das melhores lojas de homem de Lisboa (já não existe). Um pólo Lacoste custava entre trezentos e quatrocentos escudos (entre euro e meio a dois euros, leram bem)... Como eu gostava de viver com o meu ordenado de agora e com os preços de então!
A introdução vai longa, coisa mais do que típica em mim. A intenção inicial era contar que, lá por 1972 e 1973, apareceram uns conjuntos de calças e blusão da Levi's que fizeram furor. O blusão era, sou capaz de jurar, o que está na fotografia. Eram de veludo cotelet, que era como lhe chamávamos então, agora chamamos-lhe bombazina. E eram caros, muito caros... mesmo muito caros! Tenho uma muito vaga ideia de as duas peças custarem mais de mil escudos — um conto de réis, se preferirem. Mais de cinco euros, pronto!
O Vítor quis ter um conjunto desses. O Vítor, com treze anos, já estava praticamente um homenzinho, a Mãe deu-lhe o dinheiro e lá foi ele para a Baixa, sozinho, comprar o conjunto dos seus sonhos. Mas o Vítor é daltónico, completa e aflitivamente daltónico (nem imaginam as histórias que essa peculiaridade dele nos tem rendido ao longo de mais de trinta anos de Amizade).
O Vítor gosta de azul, seja lá qual for a concepção que ele tenha da cor azul. E queria comprar um conjunto Levi's azul-escuro. Seleccionou três na loja, que identificou como sendo azul-claro, um azul intermédio e... o tal azul-escuro. Foi esse que comprou, e lá foi ele para casa todo feliz. Tipicamente, em pré-adolescente entusiasmado, tirou logo as etiquetas.
À noite, depois do jantar, a querida Tia Maria Jorge (muito gosto eu da Mãe dele!), lembrou-se da compra, interessou-se, quis ver. O Vítor, ufano, levou a preciosidade para a sala, para que a Mãe partilhasse da sua felicidade. A Mãe ficou um bocadinho calada. Um bocadão, melhor dizendo. Estava a digerir aquilo que via e a tentar lidar com a questão. Por fim, lá conseguiu articular um meio sufocado:
— Ó filho, tu compraste um fato ROXO?!
Roxo, roxo, roxo, meus amigos. Com direito a lugar de honra em qualquer procissão do Senhor dos Passos! Até doía nos olhos!
O Vítor não pôde trocar o fato. E teve mesmo de o usar. Ainda me lembro de o ver com ele.
Jeans em Portugal eram um luxo, eram coisa difícil de arranjar. Felizmente havia sempre um primo mais velho, um tio, fosse lá quem fosse, a ir a Londres e a trazer-nos esses objectos de cobiça, na época ainda vagamente pecaminosos. Só depois do 25 de Abril começou a aparecer alguma coisa decentemente à altura do conceito, e estávamos tremendamente limitados em matéria de marcas. Começaram a chegar cá umas Lois (feitas em Espanha, aliás até me parece lembrar um touro no logótipo), com muita sorte, mesmo muita sorte, lá se arranjavam umas Wrangler ou umas Lee, depois era só rezar fervorosamente para que houvesse o nosso número. Eu era uma desgraçada: uma trinca-espinhas baixinha e com uma cintura impossível, só me apareciam modelos em que caberiam duas como eu. Para terem uma ideia, as primeiras Levi's Strauss que tive foram compradas em 1977, tinha acabado de fazer dezassete anos e de entrar para a Universidade. Ainda nem estavam nas lojas, foi a minha amiga Clara que descobriu o importador, fui comprá-las a um quarto andar da Rua de D. Estefânia. Custaram o escândalo de 1350$00 (coisa de seis euros e meio, é favor não rir), o meu Pai fartou-se de resmungar, mas lá abriu os cordões à bolsa. Um pullover de bom lambswool da Sidney custava menos de metade. Um de caxemira custava à volta de um conto de réis no Pestana & Brito, à época uma das melhores lojas de homem de Lisboa (já não existe). Um pólo Lacoste custava entre trezentos e quatrocentos escudos (entre euro e meio a dois euros, leram bem)... Como eu gostava de viver com o meu ordenado de agora e com os preços de então!
A introdução vai longa, coisa mais do que típica em mim. A intenção inicial era contar que, lá por 1972 e 1973, apareceram uns conjuntos de calças e blusão da Levi's que fizeram furor. O blusão era, sou capaz de jurar, o que está na fotografia. Eram de veludo cotelet, que era como lhe chamávamos então, agora chamamos-lhe bombazina. E eram caros, muito caros... mesmo muito caros! Tenho uma muito vaga ideia de as duas peças custarem mais de mil escudos — um conto de réis, se preferirem. Mais de cinco euros, pronto!
O Vítor quis ter um conjunto desses. O Vítor, com treze anos, já estava praticamente um homenzinho, a Mãe deu-lhe o dinheiro e lá foi ele para a Baixa, sozinho, comprar o conjunto dos seus sonhos. Mas o Vítor é daltónico, completa e aflitivamente daltónico (nem imaginam as histórias que essa peculiaridade dele nos tem rendido ao longo de mais de trinta anos de Amizade).
O Vítor gosta de azul, seja lá qual for a concepção que ele tenha da cor azul. E queria comprar um conjunto Levi's azul-escuro. Seleccionou três na loja, que identificou como sendo azul-claro, um azul intermédio e... o tal azul-escuro. Foi esse que comprou, e lá foi ele para casa todo feliz. Tipicamente, em pré-adolescente entusiasmado, tirou logo as etiquetas.
À noite, depois do jantar, a querida Tia Maria Jorge (muito gosto eu da Mãe dele!), lembrou-se da compra, interessou-se, quis ver. O Vítor, ufano, levou a preciosidade para a sala, para que a Mãe partilhasse da sua felicidade. A Mãe ficou um bocadinho calada. Um bocadão, melhor dizendo. Estava a digerir aquilo que via e a tentar lidar com a questão. Por fim, lá conseguiu articular um meio sufocado:
— Ó filho, tu compraste um fato ROXO?!
Roxo, roxo, roxo, meus amigos. Com direito a lugar de honra em qualquer procissão do Senhor dos Passos! Até doía nos olhos!
O Vítor não pôde trocar o fato. E teve mesmo de o usar. Ainda me lembro de o ver com ele.
Bom, pelo menos não passou despercebido.
ResponderEliminarRoxo, amor frouxo - é o que sempre digo. Espero que o Vítor (que sem c tem metade da piada) lhe tenha dado autorização para contas estas coisas...
ResponderEliminarDavid,
ResponderEliminarGaranto que não passava MESMO! Mas é a tal coisa.... como ele não conseguia ver a cor, não o afectava.
Pedro,
Pois é, tiraram-lhe o c há quatro anos, quando renovou o BI. Deve calcular como lhe custou a habituar-se à nova grafia (episódio muito cómico num vo para Miami, a hospedeira já danada, quando teve de lhe ir trazendo mais papelinhos verdes para entregar depois na Imigração, ele enganava-se sempre a escrever o nome)...
Quanto à autorização, não, não a tive. Mas ele fartou-se de rir quando leu isto. A verdadeira medida do sentido de humor é sermos capazes de rir de nós próprios :)
Beijos.
(a Teresa já contou a história aqui no Gota - daí a graça do c)
ResponderEliminarO problema não é o Vitor ter achado graça - é a imagem do Vitor nas nossas cabeças, em roxo integral! ;) (sim, Teresa, tenho uma mente muito fértil, como já deve ter reparado! ;) )
Quer-me parecer que nunca mais a mae deixou o Vitor ir as compras sozinho...
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