quarta-feira, 9 de julho de 2008

I Bears!

[peço antecipdamente desculpa pela extensão deste post, que achei que ia ter dois parágrafos. Mas é que me pus a falar de uma grande paixão minha. E quando é assim... vou por aí fora.]

Aposto que não sabiam: tenho, sempre tive uma paixão assolapada por ursos, todos os ursos, de todos os tamanhos e feitios. Com especial incidência nos grandalhões, os grizzlies e os polares. Nestas coisas, quanto maior, melhor — por uma vez, more is more (e esta rima fonética, a evitar a todo o custo em prosa, agora não deu mesmo jeitinho nenhum, mas vou deixar ficar).

A coisa é capaz de vir da infância e de ser trauma. Inexplicavelmente, nunca tive um urso de peluche, imaginem! Tive carradas de brinquedos, bonecas às dezenas (sem os exageros absurdos que observo com desagrado nas crianças de hoje) e toda a parafernália que as acompanhava: mobílias, autênticas, lindas, de madeira e não de plástico, cozinhas equipadas que até tinham um peru para pôr no forno, carrinhos de bebé, a tralha toda. Nada de Barbies, no meu tempo não faziam parte do cenário. O que havia, no mesmo género, mas com muito mais classe, sem maminhas e sem o guarda-roupa espaventoso e de bradar aos céus em nylon, era a Sindy (com S, sim), uma boneca inglesa. Classy. A Sindy tinha roupas giríssimas e eu poupava as semanadas para comprar mais, aquilo era caro. A minha maior loucura foi um fato de ski, com todos os acessórios necessários, até óculos e luvas, que custou a fortuna de... setenta escudos! A minha Mãe foi contra, mas eu tanto implorei que acabou por ceder. O dinheiro era meu, e um vinte a Francês e um dezanove a Português no mesmo dia fizeram o resto do trabalho de persuasão.

Mas voltemos aos ursos, que são o que aqui interessa. Adoro ursos, pronto! Acho-os adoráveis, com aquele ar pesadão e trangalhadanças. A pancada deve ter-se consolidado aos dez ou onze anos, no Ciclo Preparatório. Tínhamos uma professora de Moral e Religião que toda a gente adorava e a quem eu tinha uma certa aversão; até era amorosa, vá lá, mas tinha o hábito enervante de nos tratar por pequenitas. E a minha embirração por diminutivos acabados em ita ou ito vem da mais tenra infância... Seja como for, a Dr.ª X (claro que não me lembro do nome) organizou a passagem de um filme sobre a vida de Jesus na sala de cinema da escola. Chamava-se E Habitou entre Nós e viria a render uma vitória fulgurante ao meu grupo numa sessão de mímica quase vinte anos depois (lembras-te, Vítor?), quando ninguém da concorrência conseguiu decifrar o raio do título (experimentem lá gesticular isto e perceberão). Como sou muito sensível a estas coisas, verti abundantes lágrimas durante a projecção do filme. Mas o melhor (Deus me perdoe!) foi o bónus: antes do filme passaram um documentário sobre Yellowstone!

A locução era brasileira e o filme devia ter cerca de dez anos, talvez um pouco mais — fim dos anos 50, princípio dos 60, parece-me. Mostrava as típicas famílias americanas, três ou quatro filhos, banheiras descomunais, cestos de piquenique bem recheados, a fazerem bicha à entrada do parque (qual delas é indiferente) e o comité de boas-vindas de luxo: ursos à espera, a abordarem os carros, a pedincharem comida. A personagem Yogi Bear dos desenhos animados (Zé Colmeia para os mais velhos, que os mais novos nem o conhecem) foi claramente inspirada nestas cenas. Triste, muito triste (o próximo post será sobre isto) , mas eu era uma criança, não podia saber que nos trinta anos seguintes todos os crimes por nós cometidos iriam fazer perigar dramaticamente este planeta. A Wednesday escreveu ontem um post que me fez pensar imediatamente nisto. Mas o que me ficou desse filme, mais do que qualquer outra coisa, foi o desejo de ir a Yellowstone e ter a minha quota-parte de ursos. Tinha ficado irremdiavelmente apaixonada.

No momento em que entrámos em Yellowstone comecei a deitar olhos de lince ansiosos em volta, investigando cada sombra. O Vítor percebeu-me logo, «não descansas enquanto não vires um urso.» Era verdade. A criança de havia tantos anos estava ali, e estava numa ansiedade febril. Passámos quatro dias (três noites) em Yellowstone, o parque é gigantesco. Quando seguíamos pelas estradas eu já debitava em voz alta monólogos insinuantes e parvos que muito o faziam rir. «Ursosos (adoro diminutivos acabados em oso ou osa, de minha invenção pessoal, sendo que os mais bonitos de todos são aplicados a minhas Pinxejas: a barrigosa, a patosa...), a Tia Teresa está aqui... Apareçam (aparexam, confesso...), não façam isso à Tia Teresa... Ursosos, a Tia Teresa fica inconsolável se os meninos não aparecerem...»

Ao terceiro dia, ao fim da tarde, ao virar de uma curva, demos com um número avantajado de carros parados, o que nos parques nacionais quer dizer vida selvagem. Demasiados carros para serem alces, ou bisontes, ou corças, muito mais fáceis de avistar. «Cheira-me que vais ver o teu primeiro urso...», disse o Vítor.

E era mesmo! De repente, do meu lado, avistei uma forma escura. Que se foi aproximando...

Bichanei um incrédulo e maravilhado «É um ursoso!» ao Vítor.

Contentem-se com estas fotografias, que são o que há. Não me parece que vos apeteça ver manchas vagas de um lombo castanho-escuro, quando ele começou a afastar-se, e eu tão histérica que disparava às cegas, a objectiva a capturar árvores e outras coisas indistintas e medonhamente desfocadas, tudo menos o que interessava: o ursoso!!!

Minutos mais tarde, mais adiante na estrada, repetiu-se a cena. Todo um aparato de carros parados, parámos também. E eis senão quando, pela berma, novamente do nosso lado, distingui uma forma mais clara, de um castanho quase caramelo, semi-oculta pela erva alta. De súbito fez-se visível, em toda a sua beleza: era também um black bear (a bossa dos grizzlies nas costas e a cabeçorra mais larga, de orelhas arredondadas, fazem-nos inconfundíveis, seja qual for a cor), julgo que um adulto muito jovem, aí de dois anos, a viver o seu primeiro Verão de independência, que só se separam da mãe lá pelo ano e meio.

Sabem que mais? Deus estava a olhar para mim, Deus tinha ouvido as minhas preces, Deus tinha ouvido os meus monólogos cretinos a interpelar os ursos. Aquele parou, por um qualquer insondável desígnio, a menos de dois metros de nós e do nosso vidro descido, e pôs-se a trincar a erva. Tão perto que o ouvíamos mastigar. A certo momento, sacou da patosa para puxar a si um feixe mais viçoso de erva e nós suspirámos, embevecidos. Tão embevecidos que só mais tarde, ao inspeccionar as fotografias, verifiquei que não tinha UMA ÚNICA daquele milagre. Na excitação de querer vê-lo e fotografá-lo ao mesmo tempo, alguma coisa tinha de falhar. Falharam as fotografias, lamento lamentar. As imagens ficam comigo para sempre: a crock of gold (mais um).

É que disparei repetidamente a esmo, no deslumbramento daquela visão que era um sonho de anos, muitos anos. Não me parece que vos apeteça ver imagens da sua refeição, a erva tenríssima que o fez parar ao nosso lado. Se quiserem, é só pedir: tenho imensas. Deixo-vos só esta, a única que me ficou a documentar que esta beldade esteve mesmo a meu lado, e que a Criação é coisa perfeita: o meu adorável ursoso já a afastar-se. Foi o que se aproveitou. Paciência. A crock of gold. Nunca esquecerei.

Foi o que se pôde arranjar. Eu tenho mais pena, acreditem

P.S. Viria a ver mais quatro ursos. Mas todos muito ao longe, e ao lusco-fusco. Mas a emoção foi sempre a mesma. Tenho de voltar. Não vi um único grizzly!

3 comentários:

  1. Meu Deus, como é que se comenta um post destes?!

    ResponderEliminar
  2. Minha querida TereSOSA :) Morria de saudades de ti, mas a vida andou atribulada (coisas lá do pai, de coraçãozinho preocupante) e não pude vir no dia 5, que dizias que voltavas. Só mesmo hoje... E para o meu deslumbre... Ou como dizem os brasucas, pra o meu "desbunde"...rsrsrs... dou com esta pérola de narração pessoal, particular, íntima, mas docemente partilhada. Really, a crack of gold! Thx for sharing

    ResponderEliminar
  3. Talvez já tenhas ouvido falar de um parque animal em Thoiry, a alguns kms de Paris? Pois podes circular no meio da bicharada, no teu carro, ao teu ritmo e os bichinhos andam todos por ali. Não serão grizzlies, mas também me recordo de um urso, uma cria, a chapinhar num lago. É mais perto que os States, e estão numa liberdade relativa, se quiseres matar saudades...

    Eu confesso que fiquei traumatizada ao ver as condições em que estavam os dois ursos pardos do nosso zoo há uns anos atrás. Um deles parecia autista, só balançava para a frente e para trás. Até chorei, confesso (não é preciso muito...) e nunca mais lá voltei. O urso e uma zebra partiram-me o coração. Só espero que agora estejam mais bem instalados, sei que tem havido melhorias. Oxalá...

    ResponderEliminar