segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

O concerto da minha vida - Leonard Cohen

Cascais, 18 de Fevereiro de 1985 - faz hoje 23 anos, apenas menos um do que eu tinha nessa noite. Conservo ainda o bilhete encaixilhado, como coisa preciosa que é.

Eu andava nas nuvens desde o princípio de Janeiro, altura em que anunciaram a vinda dele a Portugal para um único concerto; não conseguia pensar noutra coisa. Logo que os bilhetes foram postos à venda corri à Rádio Renascença. Estão a ver o preço? Não é anedótico? Fiquem sabendo que eram os lugares mais caros, a maior parte era a 500 escudos.

O Miguel C., com quem me dava muito, ofereceu-me boleia no carro do seu grande amigo Zé A., e connosco ia mais uma menina que nem desconfio quem fosse. Graças a Deus, quando chegámos ao Pavilhão Dramático tivemos de nos separar, os lugares deles eram lá para cima, numa das bancadas laterais, e muito longe do meu. Eu queria e precisava de estar sozinha, porque é sozinha que se ouve Leonard Cohen, o meu Álvaro de Campos cantado.

Havia semanas que me interrogava sobre qual seria a música de abertura. O coração dizia-me, tão bem lhe conheço a obra, que só podia ser uma, aquela que a intuição me dizia ser a mais despudoradamente autobiográfica de todas. E depois ele surgiu, a figura ascética, as feições graníticas. Soaram as primeiras notas e eu de repente mal conseguia vê-lo, os olhos cheios de lágrimas e um soluço irreprimível a rebentar-me na garganta. Era mesmo Bird on the Wire, como eu secretamente tinha desejado, numa espécie de confirmação tácita da minha total compreensão da música dele. Tão total, tão completa, que seria também com essa música que fecharia o concerto. To come full circle.

Não sei quanto tempo durou o concerto, talvez umas duas horas e meia - eu estava numa dimensão paralela, flutuava. Mas não lhe perdoo não ter cantado Famous Blue Raincoat, outra das tais. À minha frente estava um tipo um pouco mais velho do que eu que durante os aplausos gritava esperançadamente «Raincoat!!!», sem nunca desistir. Em vão.

À saída juntei-me aos outros, que insistiam em ir sair. Recusei. Estava em estado de graça e assim queria continuar, depois daquilo tudo soaria pobre, paupérrimo. Sair, ir encafuar-me num sítio qualquer, ouvir e dizer banalidades seria quase um sacrilégio. Tinha pressa de chegar a casa, para continuar a ouvir Leonard Cohen. Tenho algures num caderno as minhas impressões dessa noite.

Tempos mais tarde, na inauguração de uma boîte (o Springfellows, ali para os lados do Campo Pequeno), encontrei o Miguel C., que me disse que eu tinha um grande admirador. Levantei uma sobrancelha, compus um ar desinteressado (e curiosíssima, claro), perguntei quem era. «É o Zé A.!» «Quem?», perguntei com toda a honestidade. «Não sei quem é.» «Claro que sabe! Até nos deu boleia para Cascais, quando fomos ao Leonard Cohen!»

Eu sabia que tinha ido ao concerto, irrefutável e inesquecível. Até sabia que um amigo do Miguel me tinha dado boleia e levado a casa. Do nome não me lembrava, o que em mim não era de admirar - a minha tão decantada memória é muito fraca no que toca a nomes. Já as caras... Nunca esqueço uma cara. Pois nem da cara do tal amigo me lembrava!

«Das tuas amigas, a única que se aproveita é aquela Teresa que foi connosco ver o Leonard Cohen, as outras são todas umas parvas!» - contou-me o Miguel que o Zé passava a vida a comentar. Um ou dois anos mais tarde, o Miguel lá conseguiria juntar-nos numa saída ardilosamente planeada. Quando vi o Zé percebi até que ponto eu naquela noite de Fevereiro estava na lua, porque ele era uma autêntica brasa. Além de ser uma pessoa encantadora. E nasceu uma amizade que continuou pelos anos fora e continua firme até hoje.

Faz também hoje 23 anos, portanto, que eu e o Zé nos conhecemos. Se não fosse tão tarde, telefonava-lhe. Fica para amanhã.

Now playing: Leonard Cohen - Bird on the Wire
(click to listen)


Adenda: Três anos depois, em Junho de 1988, Leonard Cohen voltou a Portugal. Ao Coliseu, sala que considero irreconciliável com um bom espectáculo - como o Pavilhão Atlântico, mas menos. E sorrio de lembrar que ao meu lado no camarote estava o Zé, na véspera da nossa expedição ao Alto Atlas e ao Sahara. O concerto foi uma muito pálida sombra do outro. Culpa da sala? Do público? Não sei. Mas foi decepcionante.

«
Já não é a mesma hora, nem a mesma gente, nem nada igual.
Ser real é isto.»


Alberto Caeiro


22 comentários:

  1. Estive no de 1988.
    E , realmente, foi uma decepção.
    Isto, tendo em conta que enm assisti ao 1º....

    E, linda, nunca é demasiado tarde paar fazermos aquilo que a consciência- ou o coração - nos ditam.
    Devias ter telefonado logo.
    :)

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  2. Ser real é realmente isso, como Pessoa sugere, em sua quarta pessoa, sabermos que nada soa igual ou tem igual brilho, depois... Talvez por isso tão importante é viver momentos como esse primeiro show do Cohen que viveste quase a sós, por mais que bem acompanhada. Adoro tuas histórias e a maneira como as conta. Hoje por algum motivo, sinto-me mais feliz. Talvez saibas o porquê. Belo post. :o)

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  3. Adorei a tua recordação... Hoje em dia com a facilidade que temos em acesso à música parece que já não há essa emoção.

    Olha o ocncerto da minha vida foi o do Bryan Adams em 2003. Também chorei. Pode parecer o que as outras pessoas quiserem, mas gosto desde que me lembro de existir, sou fã e adorei. A emoção e os sentimentos nunca podem ser descritos!

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  4. Ao que consta, e depois de muitos anos, o LC anda outra vez por aí em digressão. Não passa por Portugal.

    Parece que aos 70 e tal anos teve que voltar aos concertos depois de ter sido vítima de uma fraude por parte de um colaborador próximo que o deixou em dificuldades financeiras...

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  5. Teresa!

    Quem me dera ter tido juizinho como tu. Teria agora recordações no baú que choro por lhes ter perdido a relação...
    O meu primeiro concerto: Rádio Macau!Há 21 anos atrás!

    Essa verídica história de Amizade enriquece o Mundo, minha amiga.

    Obrigada pela partilha.

    Beijinhos

    Lisa

    :)

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  6. Fantástico Teresa!
    Também lá estive e senti tudo o que descreves.
    Também eu saí em estado de graça de lá e também guardo o bilhete.
    Bela recordação
    Um beijinho

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  7. Desculpe por usar o anónimo mas sou um quase zero na net. Também o meu bilhete de 1985 está guardado na caixa das ternuras. Uma maravilhosa recordação dum concerto a que fui com o meu querido João - que pouco tempo depois, a 7 de Abril ...partiu para o descanso que precisava. Um grande beijo para ti João, onde estiveres...
    maria do rio

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  8. Voltei porque como internauta, jornalista, curiosa e pesquisadora... fiquei aqui imaginando o que � que EU FAZIA neste dia 18 de fevereiro de 1985 c� no Brasil... e queres Saber Teresa? n�o lembro, mas o ano me dizia algo... foi a primeira edi�o do Rock'in'Rio que assisti de cabo a rabo, no mesmo ano, s� que um m�s antes. E tamb�m tive gratas emo�es vendo pela primeira vez Al Jarreau, James Taylor, Rod Stweart, Yes, Queen, The B 52's, George Benson, e a ent�o revela�o punk Nina Hagen... mas foi em janeiro. Epaaa a Maria acima � de que Rio? do Tejo, n� :o)

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  9. Que ternura de memórias, Teresa. Não fui a nenhum dos concertos, e tenho pena. Também adoro a música do LC, ainda hoje (embora agora já o ache um bocadinho monótono, mas há músicas dele que são inesquecíveis) e acho muito feliz a tua frase "o meu Álvaro de Campos cantado".
    É isso mesmo!

    Um beijinho

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  10. Olha que a Av tirou-me as palavras da boca! Aquela frase deliciou-me! Eu não estive em nenhum, sou demasiado nova... mas já assinei a petição para ele vir cá! Adorava vê-lo e ouvir aquela voz que tantas vezes me embalou! Podia cantar-me o 'I´m your man'... que eu também levitava!

    beijinhos

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  11. Sendo admiradores como são, já deverão saber da novidade. Mas digo-o na mesma, caso não tenham tido a possibilidade de o saber...
    Está confirmada a presença do senhor Leonard Cohen em Lisboa, no dia 19 de julho de 2008, num passeio marítimo ainda por designar. :)
    Se for novidade para vocês, já fico feliz de imaginar umas quantas caras de felicidade ao ler isto.
    Desculpem-me a invasão, mas não podia deixar de escrever.
    Belo texto, e bela amizade.
    Uma bela memória, dá para perceber.:)

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  12. Aos outros respondo depois, agora agradeço apenas a este Kiko que não conheço a notícia que ainda não me tinha chegado. E confesso que não sei se deva ir, apesar de ter assinado a petição que por aí circulou. Há memórias que, por vezes, é melhor manter intocadas.

    Beijos a todos.

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  13. De nada, não era necessário um agradecimento. Há sempre espaço para mais memórias. Das boas, de preferência... Desde que nos preparemos para as novas, as mais antigas não correm riscos.
    Digo eu, claro! :)
    Cumprimentos a todos, e à Teresa em particular.

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  14. Eu assisti ao concerto do Coliseu em Junho de 1988 e adorei, foi o meu primeiro concerto e tinha 17 anos na altura. Lembro-me de estar na fila de espera na rampa ao lado da Solmar para entrar para a GERAL e o Cohen chegar cumprimentando as pessoas com um caloroso "Good evening my friends", algumas pessoas tinham máquina fotográfica e tiraram-lhe logo umas fotografias. Cohen no Coliseu (esgotadissímo) cantou todos os seus clássicos e o concerto teve uns 4 ou 5 encores...fui uma das primeiras pessoas a assinar a petição para o trazerem cá novamente e fui eu que enviei o link para este blog. Hoje comprei o bilhete para o concerto de 19 de Julho. Teresa se me permite não fique em casa...depois arrepende-se...

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  15. Blue Bird,
    Ainda não tenho bilhete para o concerto, agora que estamos a menos de um mês. Continuo indecisa. Ele é tão sagrado para mim!

    Aos outros TODOS: um beijo.

    Este Senhor é único, não é?

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  16. Teresa que disparate, não pode ficar em casa, o Cohen para mim também é um dogma, infelizmente não estive em Cascais (era muito pequeno), mas fui ao Coliseu (foi o meu primeiro concerto) e adorei, lembro-me de vêr o Cohen chegar e cumprimentar as pessoas que aguardavam na rampa entre a Solmar e o Coliseu para entrar..."Good Evening my friends..."
    Recebi esta semana um CD Duplo com a gravação de um dos concertos do Canadá e nem sei o que dizer, se em CD é assim ao vivo dia 19 vai ser arrepiante, acredite...vá já comprar o seu bilhete... :-)

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  17. Desculpe a repetição do episódio da entrada em 1988 mas começo a ficar mesmo ansioso...

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    1. Blue Bird, nem sei se alguma vez lerá isto, passaram muitos anos. Mas ELE morreu hoje (ontem, hora do Canadá ou dos EU, onde estivesse). Acredite, amigo desconhecido, que foi das primeiras pessoas de quem me lembrei perante esta perda monstruosa. Ainda não consegui parar de chorar, eu que há um horror de anos não chorava.

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    2. Teresa, eu também estive em Cascais. abraço-te. <3 <3 <3

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    3. Espero que tenha chegado a ir Teresa. O concerto junto ao Tejo foi também mágico. Até me arrepio ao lembrar-me de LC a falar da lua que subia, no céu, à sua frente, atrás da ponte 25 de abril... O mundo ficou muito mais pobre hoje pois parou aqui a criação sublime deste poeta/cantor. Mas a lua continuará a rasgar caminho pelo céu diariamente, só para me lembrar daquele que foi um dos momentos mais simples e comoventes da minha vida.

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  18. Encontro este post 8 anos depois de ser feito e no dia que leio a noticia da morte do Leonard.
    Comento apenas para deixar o meu testemunho de como o concerto de 85 foi absolutamente mágico. Também eu guardei o bilhete (acho até que é o único que guardei), para ter algo palpável de uma noite que foi de outro mundo. Acho que muita gente do Mundo está neste momento de lágrima no olho e coração pesado. Que descanse em paz.

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  19. Boa noite Teresa. Soube na sexta de manhã a caminho do trabalho. Fiquei mesmo muito triste mas confesso sinceramente que já esperava infelizmente este desfecho pois vi no you tube um pouco da conferência da imprensa em LA há duas semanas em que ele deu a entender tudo quando disse "que tinha exagerado e que afinal pretendia viver eternamente" seguido de um sorriso talvez um pouco sarcástico ou enigmático como só o Cohen sabia fazer. Como sabe o seu humor era também muito peculiar. Para nós nunca morrerá verdadeiramente e temos os discos para o ouvir para sempre. Blue Bird

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