Fado Tropical
Este livro que agora me chegou às mãos como presente de Natal tardio (foi-me carinhosamente enviado do Brasil por uma leitora recente que já é uma amiga, a CoRa, ainda no ano passado), tem uma história curiosa.
Lá por 1978 comecei a comprar uma revista chamada Nova, que mais não era do que a versão basileira da celebérrima Cosmopolitan, à época ainda dirigida pela mítica Helen Gurley Brown. Confesso que não faço ideia de como a revista será hoje, mas naquele tempo era muitíssimo boa, e tornei-me leitora fiel desde o primeiro número, tanto que a partir daí esperava ansiosamente o seguinte. Mais do que qualquer outra coisa, e sempre a primeira que lia, conquistaram-me os artigos de Marina Colasanti, a extraordinariamente cativante mistura de sensibilidade, doçura e enorme sensatez da sua escrita. Pela revista descobri que muitos desses artigos, em 1980, tinham sido compilados em livro, e não descansei enquanto não lhe deitei as unhas. Mais tarde, e porque vários deles pareciam ter sido escritos directamente para uma amiga minha de vida conturbada e confusa, sempre a envolver-se com os homens errados, sempre a fazer enormes disparates pelos mais generosos e puros motivos... abdiquei dele para lho oferecer, certa de que em breve arranjaria outro exemplar.
Estava enganada. Passaram mais de vinte anos e eu continuava sem o encontrar - mesmo com o auxílio precioso da Internet, mais recentemente. Pois a CoRa encontrou-mo. Em segunda mão, claro, o que lhe dá um valor acrescido. Este foi um livro amado. Algures no Brasil, em 1982, uma mulher ofereceu-o a uma amiga com esta simples dedicatória: «Cristina, que você possa confirmar aqui uma nova identidade. Felicidades.» Um quarto de século mais tarde, na mesma página, nova dedicatória no mesmo livro, que essa Cristina de muito longe talvez não tenha sabido apreciar como ele merecia, ou que talvez tenha morrido, tendo a sua biblioteca sido dispersa e vendida, e que agora veio parar a mãos de alguém a quem ele muito diz: as minhas. Se alguma vez, nas estranhas voltas da vida, essa grande romancista, um de vocês vier a encontrá-lo num alfarrabista, podem ter a certeza de uma coisa: deixou de estar comigo porque eu já não sou deste mundo. E sorrio da ideia de uma terceira mulher, por amizade, tentar encontrar espaço nesta mesma página para nela inscrever uma terceira dedicatória.
Nada envelhece tão mal como um mau livro. Este, pelo contrário, continua vivo, palpitante, porque fala de questões intemporais que continuam a desafiar as mulheres - aos poucos hei-de tentar pôr aqui alguns dos seus artigos, tenho a certeza de que serão devidamente apreciados.
Numa ponte emocional e emocionada, escolho para hoje uma música de um certo génio chamado Chico Buarque, homem que do lado de lá do Atlântico ama tanto como eu a língua que nos é comum e a maneja com mestria rara. E se alguém tiver e me puder enviar a versão original, em que a plavra sífilis é bem audível, antes de uma censura cretina a ter eliminado, deixando um hiato que o meu ouvido atento capta sempre... conta desde já com a minha enorme gratidão. Ora vejam se não notam como foi brutalmente apagada:
«Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdámos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo... (além da sífilis, é claro)
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora...»
Podem ler o poema todo aqui, e maravilhar-se com as imagens que o poeta encontrou para aproximar Portugal e Brasil. Obrigada, de todo o CoRação, minha amiga...
Cresci com o meu pai a ouvir MPB. O artista favorito do meu pai é a Elis Regina. O meu é o Chico Buarque. Apaixonei-me pela Ópera do Malandro, pelo Cálice que canta com o Milton Nascimento e... pelo Fado Tropical. Nos US, era das músicas que mais ouvia quando tinha saudades de Portugal... lembra-me a infância, tão marcada pela cultura brasileira. No fundo sinto-me a mulata com rendas do alentejo.
ResponderEliminarNem imaginas o quanto me tocou, fundo fundo, abrir o teu blog hoje. Beijo.
AEnima querida,
ResponderEliminar... e o Rio Amazonas desagua no Tejo, não é?
Mais uma proximidade nossa da qual nem desconfiávamos...
Como já a debatemos em particular, limito-me a deixar-te um grande beijo.
Teresa querida,
ResponderEliminarfico contente que os correios finalmente tenham cumprido o seu papel... Sejam o meu e o seu, para enfim receberes a encomenda que pra tantos não teria interesse algum, mas pra ti sei o valor que tem e sinto-me aqui uma privilegiada por ter sido simplesmente "a ponte"... :) Teu post com tantos outros me emocionam, assim como o comentário anterior da AEnima No fundo sinto-me a mulata com rendas do alentejo... Eu também ao percorrer as ruas de Cascais senti-me um pouco ali, filha, e temos sem dúvida além das afinidades pessoais, as da nossa cultura que se entrelaça. O prazer foi todo meu de te enviar e ler isto aqui... Semana ganha :) Sorriso garantido! Que bom que apreciaste. Lembro dessa tua busca pelo Fado Original e não me esqueci dela, mas cho bem que tenhas publicado, assim somos em maior número atras de outro tesourinho perdido. Grande beijo
CoRa,
ResponderEliminarE não é engraçado que, neste post escrito para homenagear um livro querido e agradecer a quem mo ofereceu - TU! - se tenha revelado mais uma pessoa a quem tudo isto diz muito?
Visita o blogue da AEnima (a minha querida Cangalheira Emigra), vais sentir-te em casa... :)
Beijo enorme. OBRIGADA.
Teresa,
ResponderEliminarmais um post.
Mais uma lição ao meu ser profundamente deslavado perante o teu testemunho.
Aguardo, pois, os próximos posts (que prometes) em que trarás a nós, teus leitores, um pouco mais dessa relíquia...
Boa semana, Teresa.
E um beijo enorme!
Lisa
(acho que vou ficar muito caladinha)
ResponderEliminarbelo post T, que me deixa com imensa vontade de ler as crónicas desta Marina que não conheço.. E é um facto que, sempre que venho aqui, aprendo qualquer coisa. O meu ouvido pouco atento, nunca tinha dado pela hiato. Agora, não mais saberei ouvir esta música sem o sentir...
ResponderEliminarObservação importante: não tem nada a ver com este post!
ResponderEliminarFaz-me um favorzinho e vê isto. Pode ser traumatizante para quem gosta de gatos (que é o meu caso e o teu!)...
http://bp2.blogger.com/_NhP7KwIY0RI/RYxQy8NZDvI/AAAAAAAAABI/_NhwP5lx1lI/s320/cat.jpg
LOL!
Teresa, conheces a versão que o Moustaki fez desta música? Deves conhecer... é mais politizada, mas vale pela alegria de ouvir a frase mille fleurs vermeilles en avril au Portugal. Não sei se este link funciona, mas tenta. Beijinhos!
ResponderEliminarLisa,
ResponderEliminarVou ver se o ponho a digitalizar lá no colosso, pelo menos alguns artigos...
Beijo!
Mad,
E eu que tanto gostaria de ouvir o que tens a dizer... :)
Quanto à imagem... eu acho que pegaram num esfinge e o resto é photoshop...
Beijo!
TCL,
ResponderEliminarAcho que aprendemos todos uns com os outros.
E agora é impossível não dar pelo hiato, não é?
Beijo!
Hucleberry Friend,
Então não havia de conhecer? :)
Aliás o post de hoje é justamente sobre ele, Moustaki. O teu comentário fê-lo avançar em relação a tantos outros discos que também são discos da minha vida - obrigada!
Beijo!