Phantasmagoria in Two
O Nuno morreu. O Nuno Debonnaire. O meu amigo Nuno.
À medida que as horas avançam a dor vai-se fazendo maior e mais intolerável, porque vou lembrando cada vez mais coisas. Andei ao acaso pelas ruas, debaixo de chuva, ainda naquela fase embrutecida que se segue imediatamente ao choque da notícia – apesar de já sabermos ser a dele uma morte iminente. Entrei na igreja, onde fiquei poucos minutos, ia começar uma missa que devia ter que ver com escuteiros, tantos eram os que enchiam os bancos. Escolhi sair, apeteciam-me coisas que não ia obviamente ter: recolhimento, solidão, talvez conseguir chorar. Voltei para a rua e para a chuva. Ia com música, claro (quando é que eu estou sem música?), mas Phantasmagoria in Two, que não estava comigo, era a música que eu queria ouvir, tanto me lembra o Nuno. Era um dos meus discos que ele infalivelmente punha a tocar, com aquele à-vontade naturalmente nascido de uma intimidade de muitos, muitos anos, ao chegar a minha casa, visita quase diária no tempo em que eu vivia na Rio de Janeiro e ele ainda estava casado com a Mafalda. A Mafalda – pobre Mafalda, que vem a caminho de Lisboa para dar a notícia aos três filhos que tiveram, deve chegar já não tarda muito – não se importava, se algum amigo telefonava à procura do Nuno já depois de ele ter saído a seguir ao jantar, dizia com toda a tranquilidade «Deve ter ido para casa da Teresa. Tem o número?» Em casa deles o Nuno não conseguia ouvir música, e a música era o elemento natural da minha. E ficávamos a ouvir Tim Buckley, Simon & Garfunkel, o nosso adorado e nunca esgotado Odessa dos Bee Gees, Sérgio Godinho, Chico Buarque...
Conhecemo-nos quando eu tinha vinte anos, ele tinha mais três. No Stone’s, através de um namorado de passagem na minha vida a quem devo duas grandes amizades: a dele, Nuno; e a do Pedro – com quem hoje já falei várias vezes. Depois dos filhos, julgo que talvez nós dois sejamos os maiores lesados com esta ausência agora definitiva do Nuno. Ao tal namorado nunca dei qualquer importância, foi um mero incidente de percurso. A minha amizade com o Nuno nasceu nessa época, ele captou-me muito depressa e muito bem. Um dia, lembro-me, ofereceu-se para nos levar a casa ao fim da noite, a mim e ao tal namorado, que viria a fazer de mim a chacota de meia Lisboa durante coisa de um mês, com ameaças de suicídio e cenas canalhas nos sítios mais impróprios, quando eu quis pôr um ponto final na coisa. Toda essa palhaçada valeu-me no Centro de Bridge uma alcunha da qual até hoje, tantos anos depois, não consegui livrar-me: Viúva Negra. Depois de deixar o L. em casa, era a minha vez. A cassete no leitor começou a tocar I Need You to Turn To, um prato violento para mim. Pedi com voz neutra ao Nuno que tirasse a música. Ele parou o carro e ao som das palavras de Elton John (And I wonder sometimes and I know I'm unkind, But I need you to turn to when I act so blind, And I need you to turn to when I lose control, You're my guardian angel who keeps out the cold) agarrou-me pelos ombros e sacudiu-me: «Minha querida, há alturas na vida em que há que ter a coragem de preferir o mau ao medíocre menos!» Quando amanheceu ainda conversávamos, a primeira de muitas enormes e intermináveis conversas.
Com quem vou eu agora falar de Proust? Ou de Stendhal? Ou de Eça, que sabíamos de cor? Ou de Enid Blyton e dos Cinco? O Pedro tinha autênticas fúrias connosco. «Como é que dois adultos inteligentes e cultos conseguem gastar horas numa conversa de autênticos atrasados mentais?!» O Nuno e eu discutíamos Enid Blyton com a mesma paixão com que discutíamos Proust, é verdade. E estávamos sempre a armar ratoeiras que nunca apanhavam o outro desprevenido. «Como é que se chamava o cão do número 3?» – para chegar à resposta era preciso saber que o número três era Os Cinco Voltam à Ilha, sabíamos os 21 títulos de cor. O interpelado nem pestanejava. «Era o Sarnoso!» – resposta triunfante. E em que livros aparecia a João, a ciganita do 9? E como se chamava o porquinho do 16? Ou o mordomo do 4? Ou os bandidos do 10?
Tenho um retrato no Stone’s que nos apanhou numa dessas disputas, no tempo em que o Telmo cirandava por ali de máquina em punho.
E tínhamos também o Guilherme. Que viria a ser o meu último presente, há um mês. Encontrei O Dia de Folga num alfarrabista, comprei-o para o Nuno, na altura no hospital, foi o Pedro quem lho entregou, o Nuno não queria que eu o visse como estava. Conseguiu arrancar-lhe um sorriso (não tenho este!), fica-me essa alegria. Partiu hoje a única pessoa com quem partilhei a paixão pelo Guilherme. E outras paixões.
Continuo atordoada, há mortes para as quais nunca estamos suficientemente preparados, por mais anunciadas que sejam. Queria agora, impossível dos impossíveis, voltar a ter vinte anos e estar empoleirada num parapeito do Stone’s, junto à cabine, nosso poiso infalível (controlávamos e decidíamos toda a música que se ouvia), a filosofar com o Nuno, com teorias definitivas sobre a vida.
Continuo atordoada, sim. Mas está a doer cada vez mais. O meu amigo Nuno deixou de estar ao alcance de um telefonema, de uma viagem de dez minutos de carro.
Meu querido Nuno, tenho tantas saudades de si e de nós! E de nós dois com o Pedro. Éramos especiais, nós três.
(To be continued)
À medida que as horas avançam a dor vai-se fazendo maior e mais intolerável, porque vou lembrando cada vez mais coisas. Andei ao acaso pelas ruas, debaixo de chuva, ainda naquela fase embrutecida que se segue imediatamente ao choque da notícia – apesar de já sabermos ser a dele uma morte iminente. Entrei na igreja, onde fiquei poucos minutos, ia começar uma missa que devia ter que ver com escuteiros, tantos eram os que enchiam os bancos. Escolhi sair, apeteciam-me coisas que não ia obviamente ter: recolhimento, solidão, talvez conseguir chorar. Voltei para a rua e para a chuva. Ia com música, claro (quando é que eu estou sem música?), mas Phantasmagoria in Two, que não estava comigo, era a música que eu queria ouvir, tanto me lembra o Nuno. Era um dos meus discos que ele infalivelmente punha a tocar, com aquele à-vontade naturalmente nascido de uma intimidade de muitos, muitos anos, ao chegar a minha casa, visita quase diária no tempo em que eu vivia na Rio de Janeiro e ele ainda estava casado com a Mafalda. A Mafalda – pobre Mafalda, que vem a caminho de Lisboa para dar a notícia aos três filhos que tiveram, deve chegar já não tarda muito – não se importava, se algum amigo telefonava à procura do Nuno já depois de ele ter saído a seguir ao jantar, dizia com toda a tranquilidade «Deve ter ido para casa da Teresa. Tem o número?» Em casa deles o Nuno não conseguia ouvir música, e a música era o elemento natural da minha. E ficávamos a ouvir Tim Buckley, Simon & Garfunkel, o nosso adorado e nunca esgotado Odessa dos Bee Gees, Sérgio Godinho, Chico Buarque...
Conhecemo-nos quando eu tinha vinte anos, ele tinha mais três. No Stone’s, através de um namorado de passagem na minha vida a quem devo duas grandes amizades: a dele, Nuno; e a do Pedro – com quem hoje já falei várias vezes. Depois dos filhos, julgo que talvez nós dois sejamos os maiores lesados com esta ausência agora definitiva do Nuno. Ao tal namorado nunca dei qualquer importância, foi um mero incidente de percurso. A minha amizade com o Nuno nasceu nessa época, ele captou-me muito depressa e muito bem. Um dia, lembro-me, ofereceu-se para nos levar a casa ao fim da noite, a mim e ao tal namorado, que viria a fazer de mim a chacota de meia Lisboa durante coisa de um mês, com ameaças de suicídio e cenas canalhas nos sítios mais impróprios, quando eu quis pôr um ponto final na coisa. Toda essa palhaçada valeu-me no Centro de Bridge uma alcunha da qual até hoje, tantos anos depois, não consegui livrar-me: Viúva Negra. Depois de deixar o L. em casa, era a minha vez. A cassete no leitor começou a tocar I Need You to Turn To, um prato violento para mim. Pedi com voz neutra ao Nuno que tirasse a música. Ele parou o carro e ao som das palavras de Elton John (And I wonder sometimes and I know I'm unkind, But I need you to turn to when I act so blind, And I need you to turn to when I lose control, You're my guardian angel who keeps out the cold) agarrou-me pelos ombros e sacudiu-me: «Minha querida, há alturas na vida em que há que ter a coragem de preferir o mau ao medíocre menos!» Quando amanheceu ainda conversávamos, a primeira de muitas enormes e intermináveis conversas.
Com quem vou eu agora falar de Proust? Ou de Stendhal? Ou de Eça, que sabíamos de cor? Ou de Enid Blyton e dos Cinco? O Pedro tinha autênticas fúrias connosco. «Como é que dois adultos inteligentes e cultos conseguem gastar horas numa conversa de autênticos atrasados mentais?!» O Nuno e eu discutíamos Enid Blyton com a mesma paixão com que discutíamos Proust, é verdade. E estávamos sempre a armar ratoeiras que nunca apanhavam o outro desprevenido. «Como é que se chamava o cão do número 3?» – para chegar à resposta era preciso saber que o número três era Os Cinco Voltam à Ilha, sabíamos os 21 títulos de cor. O interpelado nem pestanejava. «Era o Sarnoso!» – resposta triunfante. E em que livros aparecia a João, a ciganita do 9? E como se chamava o porquinho do 16? Ou o mordomo do 4? Ou os bandidos do 10?
Tenho um retrato no Stone’s que nos apanhou numa dessas disputas, no tempo em que o Telmo cirandava por ali de máquina em punho.
Time it was, and what a time it was, it was
A time of innocence
A time of confidences
Long ago, it must be
I have a photograph
Preserve your memories
They're all that's left you
A time of innocence
A time of confidences
Long ago, it must be
I have a photograph
Preserve your memories
They're all that's left you
E tínhamos também o Guilherme. Que viria a ser o meu último presente, há um mês. Encontrei O Dia de Folga num alfarrabista, comprei-o para o Nuno, na altura no hospital, foi o Pedro quem lho entregou, o Nuno não queria que eu o visse como estava. Conseguiu arrancar-lhe um sorriso (não tenho este!), fica-me essa alegria. Partiu hoje a única pessoa com quem partilhei a paixão pelo Guilherme. E outras paixões.
Continuo atordoada, há mortes para as quais nunca estamos suficientemente preparados, por mais anunciadas que sejam. Queria agora, impossível dos impossíveis, voltar a ter vinte anos e estar empoleirada num parapeito do Stone’s, junto à cabine, nosso poiso infalível (controlávamos e decidíamos toda a música que se ouvia), a filosofar com o Nuno, com teorias definitivas sobre a vida.
Continuo atordoada, sim. Mas está a doer cada vez mais. O meu amigo Nuno deixou de estar ao alcance de um telefonema, de uma viagem de dez minutos de carro.
Meu querido Nuno, tenho tantas saudades de si e de nós! E de nós dois com o Pedro. Éramos especiais, nós três.
(To be continued)
É tão absurdo, tudo. No fim, é só isso, as saudades.
ResponderEliminarNem sei, querido Perdido. Estou agora mais com o velho Hamlet, na sua frase final: The rest is silence.
ResponderEliminarMas isto dói como tudo, essa é que é a verdade.
Li e faço silêncio.
ResponderEliminarUm beijo
Deixar que cada lágrima traga uma recordação ... essas, assim como a amizade, são eternas.
ResponderEliminarSentidos pesames.
Querida,
ResponderEliminarImortalizaste-o como ninguem mais. Havera de estar comovido contigo tambem. Aproveita o Pedro e o Victor e todos os amigos que carregas junto ao coracao, todos os dias...
Essa dor apalavrada e essa amizade eterna caem forte a qualquer leitor.
ResponderEliminarUm beijo
Um grande beijinho para ti boa amiga.
ResponderEliminarQuando se vão os que amamos resta-nos a saudade. No entanto é tão melhor sofrer com a perda do que sofrer por nunca ter desfrutado...
ResponderEliminarBeijo Grande
Querida Teresa:
ResponderEliminarUm beijo grande.
Morreu- TE um amigo, é isso? É que é diferença de morrer um amigo teu...
ResponderEliminarUm beijo- grande.
sinto muito
ResponderEliminarbeijo grande
Não sei quantas vezes já aqui vim e, saio sem nada dizer.
ResponderEliminarSempre que cá venho só consigo pensar num livro "o Principezinho" e naquela parte da raposa onde um tem que cativar o outro!
beijos d'enxofre
Sabes, ja ca vim ontem e nao disse nada... pensei, sabia o que queria dizer mas nada me parece adequado.
ResponderEliminarUm forte abraco e um beijinho.
Fico-me pelo beijo.
ResponderEliminarBeijo.
é daqueles comentários impossíveis! Beijinho e que as boas memórias te consolem um pouco..
ResponderEliminarLamento!!!!
ResponderEliminarA vida é uma gota que vai secando conforme crescemos,por vezes mais rápida, outras mais lenta,temos que estar preparados, pois ao secar não existe qualquer dúvida que a morte nos visitará a todos sem excepção.Não estejas triste,continua a falar com o teu amigo,a ouvir as vossas músicas,que de certeza vais encontar um sinal de que ele estará sempre contigo, um abraço apertado. apesar de não te conhecer.Gosto muito de ler o teu blog,é sempre muito doce e puro.Cuida de ti a vida continua,e tu estás viva apesar de tudo. FIFI
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