sábado, 8 de fevereiro de 2014

Quando os erros estão no original

Já todos sabem que tenho uma enorme paixão por teatro. E que tenho também uma enorme paixão por ópera. Quando ambas as paixões podem ser reunidas numa peça, dir-se-ia que aterramos no melhor dos mundos, não é verdade?

Não forçosamente. Terrence McNally, dramaturgo premiado com nem mais nem menos do que quatro Tonys, escreveu em 1985 esta The Lisbon Traviata, que nunca vi em palco, a única das suas peças que vi foi Master Class (Tony para a melhor peça de 1996).

A acção decorre no presente (de então) e a peça foi considerada ousadíssima, viviam-se os primeiros e conturbados tempos da SIDA, Rock Hudson, o primeiro nome mundialmente conhecido a sofrer da doença, morreu nesse ano. Todas as quatro personagens da peça são gays, duas delas, Stephen e Mike,  numa relação de anos que agoniza nos seus últimos dias, quando já surge no horizonte uma terceira pessoa para Mike, um rapazinho mais novo de seu nome Paul (fixem este nome), que, diz-nos o autor, está a meio da casa dos vinte. Seria portanto rapaz a rondar a minha idade, já que nasci em 1960.

Devo dizer que a peça poderá ser um tédio monumental para quem não saiba bastante de ópera, tamanho é o desfilar de nomes e títulos, um autêntico name dropping que chega a soar oco e fútil, tanto se saltita nas referências a nomes como (abramos ao acaso, vejamos, serve a página 11) Thais, Beverly Sills, Manon, Dame Janet Baker, Régine Crespin, Nuits d'Été, Eleanor Steber, Christa Ludwig, Suzanne Danco, Hildegard Behrens, L'Invitation au Voyage, Jessye Norman. Tudo isto numa única página, menos de um minuto em palco.

O pretexto para a peça é o facto de ter acabado de surgir no mercado uma nova Traviata com a Callas (fui verificar, o disco foi lançado em 1980), uma gravação pirata da sua célebre Violetta de 27 de Março de 1958 em Lisboa, no Teatro de S. Carlos. Gay que se preze costuma adorar ópera. Mais ainda, gay que adore ópera tem geralmente uma autêntica obsessão por Maria Callas. O próprio Terrence McNally a tem confessamente, ou não teria escrito esta peça. Nem teria escrito Master Class, que é justamente sobre as aulas que a diva deu em 1971 e 1972 na famosa Juilliard School de Nova Iorque.

Para abreviar, até porque as probabilidades de qualquer um de nós vir a ver a peça em palco são escassas, vou directa aos erros. Por razões que seria demorado explicar, o primeiro acto decorre em casa de Mendy (muito gostaria eu de ter visto Nathan Lane no papel!), a seguir a um jantar em que tem Stephen como convidado. Stephen calha a mencionar a Traviata de Lisboa, que acabou de comprar, e a partir daí Mendy fica posseso, num frenesi insuportável, quer à viva força ir buscar o disco, morre se não o ouvir quanto antes. Stephen recusa firmemente, Mike está na casa de ambos e recebe nessa noite o seu novo namorado. Que nasceu em Portugal, filho de portugueses, que poderá (ou não, e é isso que Mendy tenta desesperadamente tirar a limpo) ter sido levado pelo avô a ver a Traviata de Lisboa, no Teatro San Marco — leram bem. E que se chama Paul Della Rovere — também leram bem.

No fabuloso All that Chat, fórum do não menos fabuloso Talkin' Broadway, vi-me há uns bons doze anos envolvida numa discussão sobre a peça. Apontei estes dois erros, e foi uma risota. Se uns quantos sabiam que a nossa casa nacional de ópera se chama na verdade Teatro de S. Carlos e concordaram que era um erro grosseiro, e inadmissível, da parte de alguém que escreve uma peça inteira sobre uma récita que nela decorreu, todos ignoravam que Paul Della Rovere nunca poderia ser um nome português. E todos concordámos em que Terrence McNally poderia e deveria ter feito qualquer coisa de tão simples como telefonar para a Embaixada de Portugal e pedir uns quantos nomes portugueses. Custava muito?

E depois a discussão surgiu, lançada por mim, quanto ao terceiro erro. O tal Paul, ainda a viver em Portugal, nunca poderia ter sido levado pelo avô a ver a Traviata da Callas em 1958. A ser já nascido (lembrem-se de que o dramaturgo o situa nos mid-twenties em 1985), seria ainda criança de colo. E se, como concordámos todos quando a galhofa já era imparável, em vez da Traviata, a ópera fosse Medea, a criancinha bem poderia ter ficado traumatizada para o resto da vida. Mas não se levam crianças de colo para a ópera, pois não? 




10 comentários:

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    1. É impossível não rir muito, não é? Nem imaginas a risota que foi no All That Chat, toda a gente a contribuir com mais achegas absurdas.

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  2. Foi bom ouvir este pedacinho da Traviata de Lisboa logo a seguir a "Brokeback Mountain", que não deixa de vir a propósito.

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    1. Concordo que a gravação é um tesouro. Tenho de voltar a comprá-la, estava entre os discos que me desapareceram quando me roubaram o carro, em 1999, e ainda não a substituí.

      E o S. Carlos bem podia fazer e dizer como o Sr. Guimarães dos Maias, que em Paris é M. de Guimaran: «embirro que me estropiem o nome:» :)

      Espreita aqui:
      Terrence McNally on The Lisbon Traviata

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    2. Obrigado. Nunca tinha visto um bocadinho que fosse.

      (Adriana "Lacouvrêr"??

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    3. «Ils ne sont pas doués pour les langues, ces américains!» :)

      Mas, independentemente da qualidade real da peça, apetece mesmo ver tudo, não é? Não sei se reparaste nos comentários, há alguém que diz saber da existência dela em DVD.

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    4. Quase de certeza que não foi. Master Class, Rita Ribeiro fazia de Callas.

      Espreita mas é aqui. Entretanto, encontrei esta descrição da peça em DVD:

      «A live performance of the tragicomedy. The play revolves around Stephen, a depressed literary editor and opera fanatic. Stephen especially adores Maria Callas and dishing the latest gossip with his best friend, Mendy, a wildly flamboyant and catty opera queen. They talk late into the night in an attempt to distract Stephen from his unraveling relationship with his partner. When Stephen returns home to confront his lover, a tragedy erupts on the scale of a grand opera.»

      E mais isto. Que me dizes? :)
      http://www.premiereopera.com/7429lisbontraviata.aspx

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    5. Lembro-me dessa "Masterclass" no Politeama. Traumatizante.

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  3. Traumatizante é pouco. A senhora não falava, gritava.
    Fisicamente estava muito aceitável (acho aliás que emagreceu imenso para fazer o papel).

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