terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Da tradução e da revisão

Vou tentar que isto não fique muito longo. Vou tentar, principalmente, que não soe sentencioso.

Acabei já depois da uma da manhã este A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert, de Joël Dicker. Comecei a lê-lo cedo no domingo, ao pequeno-almoço, o que quer dizer que o despachei em dois dias — proeza de não pouca monta, se considerarmos as suas 684 páginas.

Que o livro se devora, que é viciante, é incontestável. Se é um grande livro? Não, sinceramente não me parece que seja. Não me imagino a relê-lo, o que  creio ser um bom critério inicial para avaliar qualquer livro. Digamos que é o novo Código Da Vinci. Como policial (à falta de melhor designação), digamos que é como um romance de crime aberto de Agatha Christie com o dobro do tamanho e metade da qualidade de escrita. Mas isto, repito, é apenas a minha opinião, estou aberta e até curiosa quanto às vossas opiniões discordantes. É que o livro recebeu apenas o Grande Prémio de Romance da Academia Francesa (e quem sou eu para discordar da Academia Francesa, em que pontifica, no lugar n.º 12, o meu amado Jean d'Ormesson?), o Prémio Goncourt e o prémio da revista Lire para o Melhor Romance em Língua Francesa.

Mas não é sobre o livro em si que quero falar, é sobre questões de tradução e revisão que a bisarma que é esta edição portuguesa de 684 páginas ilustra às mil maravilhas.

Aos meus olhos, o bom tradutor é aquele que conhece a fundo a língua da qual traduz e que se exprime com elegância e correcção na língua para a qual traduz. O bom revisor deverá escrever com maior correcção ainda, porque é ele quem fixa o texto definitivo, são seus os últimos olhos a percorrerem o texto antes da entrada na gráfica e da saída para o mundo. O bom tradutor até pode pontuar deficientemente e fazer aqui ou ali o seu erro ortográfico, contanto que as palavras escolhidas espelhem fielmente e com riqueza as do autor; para o resto temos o revisor, para polir eventuais arestas, para suprir distracções mais do que naturais em quem, de tão mergulhado na conversão de um texto de uma língua para outra, de dar voltas e mais voltas, «deixa cá ver como é que fica melhor...», «não, antes assim», acaba fatalmente por perder as árvores de vista para só ver a floresta — a verdade é que tenho uma admiração e um respeito sem limites por um bom tradutor. E ambos, tradutor e revisor, devem ter, em doses iguais, uma boa cultura geral.

A tradução deste A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert pareceu-me boa, muito boa até, mais ainda se considerarmos o gigantismo do trabalho. Detectei APENAS dois erros (o que é notável, considerando a aflitiva quantidade de baboseiras que passamos a vida a encontrar nas traduções mais banais, baboseiras essas que se tornam ainda mais ofensivas em livros com preços de capa acima dos vinte euros). O primeiro erro, nada de grave, a palavra "eficácia" quando deveria ser, claramente, "eficiência" — uma medida é eficaz, um desempenho é eficiente. Surge duas vezes. O segundo erro, para mim surpreendente e incompreensível, foi um "conquilhas Saint Jacques" encontrado a páginas tantas. "Coquilles Saint-Jacques" (não esqueçamos que o original é francês) são muito simplesmente vieiras.

E a revisão? Pois a revisão, a cargo de três revisores diferentes, o que pode ser bom numas coisas e mau noutras, também é excelente, apraz-me dizer. Francamente superior à média, se querem a minha opinião.

Não se deixem impressionar desfavoravelmente por esta selva de coisinhas encontradas e assinaladas, porque é mesmo disso que se trata quase sempre: coisinhas. Erros graves encontrei um único, um medonho "encarregue" como particípio passado, coisa que não existe, é "encarregado" — "fora encarregado", "tinha sido encarregado", por exemplo. A forma verbal "encarregue" existe apenas no conjuntivo (que eu encarregue, que ele encarregue). Infelizmente passamos a vida a ouvir e a ler este disparate. Erros de ortografia, que me lembre, também só encontrei um, um "reboliço" (escreve-se "rebuliço").

Foi muito agradável encontrar sempre (tirando um único caso, foi distracção, pela certa) bem escrita uma coisa que 97% das pessoas (sim, arrisco esta percentagem incrível) escrevem mal: o verbo deparar sem pronome reflexo. Toda a gente escreve "deparei-me com", "deparou-se com", e está errado; "deparei com", "deparou com", pura e simplesmente. Pensem um bocadinho, usem o bom senso, que é coisa muito útil. Há alguma necessidade do pronome reflexo? Não, pois não? Ora aí têm, é ou não é simples? Faz ou não faz sentido? 

Foi igualmente agradável verificar que, quase de certeza, apenas um dos revisores persiste no erro de escrever "ter a ver com" em vez do correcto "ter que ver com". E agora entramos na questão delicada que pode ser ter três pessoas a reverem uma obra. Podemos pensar, com toda a lógica, que três pares de olhos vêem mais do que um único, mas as coisas não são bem assim. Para começar, há que fixar critérios, para não depararmos [esta foi deliberada, confesso] depois com coisas ora escritas assim, ora assado. E isto do Português não é a casa da Joana, há regras, e a primeira coisa que o revisor deve fazer é conhecê-las e ater-se a elas. E não fica bonito ler ora "Coca-Cola" em redondo, ora "Coca-Cola" em itálico, como deve ser, já que é em itálico que as marcas devem ser grafadas. Tal como não fica bonito ler agora "no Alabama" para, umas quantas páginas adiante, já se ler "em Alabama". Foi por coisas destas, pela falta de uniformidade, que percebi o esquema de revisão adoptado: a cada revisor foram distribuídos bocados diferentes do livro. Se atentarem na imagem acima, talvez consigam ver que a floresta de post-its se adensa ali por volta das páginas 500, que registam gralhas muito mais frequentes do que o resto do livro; insignificantes? sim, sem dúvida; mas gralhas, ainda assim, e o que se quer, tanto quanto possível, é um livro absolutamente limpo.

Ora isso, um livro absolutamente limpo, é coisa quase utópica — há sempre uma maldita de uma sílaba que falta (alguns casos), quando não é mesmo uma palavra inteira (mais uns quantos) ou até uma vírgula que, por mais se leia e releia, não se vê que está a separar sujeito e predicado, crime de lesa-majestade na nossa língua; encontrei esse erro uma única vez, e foi seguramente distracção ou cansaço visual, nenhum destes três revisores deixaria passar tal coisa, percebi perfeitamente.

Acresce que, por isso mesmo, por um livro absolutamente limpo ser coisa quase utópica, temos de considerar uma última possibilidade: a de haver erros no original, erros não detectados quer pelo autor quer pelos revisores iniciais. Desses encontrei três, e fizeram-me sorrir, confesso. A acção do romance decorre nos Estados Unidos, mas o autor é europeu e escreve em francês, lembram-se? Pensamento e grafia atraiçoam-no por três vezes, fazendo-o deslizar para o terreno natal. É assim que, duas ou três vezes, uma tal "Terrace Avenue" surge de repente como "Terrasse Avenue"; é assim que nos surge primeiro um "gofres" (do francês "gaufres") para, lá mais para a frente, surgir a mesmíssima guloseima, desta vez correctamente, já que estamos nos Estados Unidos: "waffles". E é assim que, finalmente, se encontra um prato qualquer que, numa ementa, custa não sei quantos euros. Aqui tive de rir, confesso. Esperem, fui confirmar. Estava a esquecer-me de um outro erro, ainda por cima boçal. Eis o que pode ler-se na página 243: «Costoleta de porco: 8 euros.» "Costoleta", a sério? A palavra remete-me logo para restaurantes tascosos em que a redacção das ementas nos faz hesitar entre a vontade de rir e a de chorar.

Por último, e porque isto, tal como eu receava, está já a ficar demasiado extenso, devo dizer-vos que ao longo de todo o livro encontrei consistentemente a mesma forma de desacordo verbal que é um erro tão disseminado que às vezes pergunto a mim mesma, desconcertada, se só eu e mais duas ou três pessoas que (felizmente) conheço daremos por ela. E é coisa mesmo muito feia de ler, quando se abrem os ouvidos. Mas isso, meus bons amigos, fica no segredo dos deuses, por enquanto, reservado que está para a editora, à qual tenciono oferecer os meus préstimos. E apenas no caso de me contratar para a revisão da segunda edição, claro está, que sou boazinha mas não sou parva.

26 comentários:

  1. [Olha o Carlos Seixas!]

    Está aqui (Ciberdúvidas) um artigo muito interessante sobre as questões relacionadas com "ter de" e "ter que" e "ter a/que ver com". Parece que podemos aceitar o "ter a ver com" como correcto, assim como o "ter que" como equivalente a "ter de" (com o sentido de obrigatoriedade), embora se dê preferência a "ter de". É uma questão muito complicada, em relação à qual os próprios linguistas têm opiniões divergentes.

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    1. [sim, Carlos Seixas, queria um compossitor português. :) Sempre atento, e o que eu gosto que gostem da música!]
      Lembro-me de já ter lido em tempos esse artigo. Sabes? Eu opto sempre pela forma mais rigorosa, por considerar que é provavelmente a mais correcta. E fico com vontade de rir quando alguém me responde qualquer coisa como "mas o Priberam diz que..." Quantas e quantas asneiras já encontrei no Priberam!
      Pois se ele até já considera que o abominável "solarengo" é o mesmo que soalheiro!
      http://www.priberam.pt/dlpo/solarengo

      E agora desculpa, mas vais ter de me explicar como foi que puseste o link para o artigo do Ciberdúvidas!!! Ensina-me, please!!!

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    2. Diz lá que não sou uma boa aluna, Paulinho!
      Ora espreita lá o medonho "solarengo"

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    3. Obrigada! Obrigada! Agora apetecia-me fazer aquele gesto de agradecimento do Bugs Bunny vestido de Brunhilde. :)

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  2. Ah, mas é que fiquei mesmo curiosa quanto a esse desacordo verbal. E admito que teria cometido alguns dos erros que a Teresa aponta (reboliço, ainda que também exista mas com outro significado, ou deparar-se).

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    1. Mas concorda que, se pensar no assunto, o pronome reflexo não está a fazer nada no "deparar com", não é verdade? Aposto que é coisa que nunca mais escreverá. :)
      Reboliço também existe como adjectivo, sim senhora, mas é muito pouco frequente.
      Quanto ao desacordo verbal, explico de seguida por mensagem no Faceboo.

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    2. Podes incluir-me? Também fiquei muito curioso.

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    3. Naturalmente. Desde que não vás vender os meus segredos à concorrência. ;)

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  3. Muito bem Teresa, ler um livro com gralhas e erros vários é algo que me incomoda, porque para mim, o facto de ler ajuda a não dar erros e a falar correctamente, esta foi a ideia que passei aos meus filhos, ora se quem lê está à partida a ler erros, mais facilmente os dará...
    Obrigada por este post!

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    1. Pois é, Lena. Tenho para mim que se a minha geração escreve talvez com menos erros é, provavelmente, porque os livros eram feitos com mais cuidado.
      Agora dissemina-se o erro, e depois vem logo alguém sustentar que se tanta gente diz é porque está certo.

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  4. Excelente, Teresa. Obrigada!
    Há uns meses coloquei essa dúvida do "ter a ver com" ou "ter que ver com" e foi assim que me responderam:
    http://www.portoeditora.pt/espacolinguaportuguesa/duvidas-da-lingua-portuguesa/detalhe-duvidas-lp/ver/ter-que-ver-com-ou-ter-a-ver-com-?id=10482

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    1. Veja o link sugerido pelo Paulo logo no primeiro comentário, e a minha resposta.

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  5. Inês, eu arriscava dizer-lhe que qualquer um dos consultores do Ciberdúvidas (todos professores catedráticos) tem mais competência a dormir que os da Porto Editora todos somados e bem acordados.
    Além de que fiquei logo enervada com aquele "corretas" na resposta que lhe deram. :)

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  6. hoje vim cá ler este post de propósito pela segunda vez, a ver se fixo bem os erros que eu não quero dar nunca mais de futuro (envergonho-me muito de dar erros, tenho a mania que não dou, mas ao ler este texto vejo como sou ignorante da nossa língua). Mas é maravilhoso que ainda haja pessoas que a conhecem tão bem e que podem dar estas "lições". Estou a torcer para que essa editora aceite os seus préstimos!

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    1. Pois fique sabendo, cara a.i., que enviei e-mail logo a seguir a ter publicado este post. Respondeu-me a minha amiga? Eles também não. Nem um simples »Recebemos. Não, obrigado.»

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  7. Tão irritante com a confusão eficácia / eficiência, é a que existe entre adesão / aderência. Já vi coisas magníficas escritas por jornais ou revistas, sobre manifestações com grande aderência, ou pisos com falta de adesão.

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    1. Essa é outra praga. E acorrer/ocorrer?
      Uma vez, há uns anos, no Europeu em Portugal, uma locutora de televisão exultante repetia frenética que as pessoas não paravam de "ocorrer" ao Marquês de Pombal.
      Só ao estalo.

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  8. Meu Deus, Teresa, que olho tão bem treinado para a caça [ao? do?] dislate. Sinto-me arrepiado. Temo a sua radiografia dos meus textos. Notável. E quer crer que o erro crasso dos euros me escapou quando li o livro?

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    1. Saiba o meu caro amigo que não me lembro de alguma vez ter encontrado um erro que fosse no seu blogue.

      Uma asneira monumental no único livro de José Rodrigues dos Santos que li (fiquei a abominá-lo) em que parece que ninguém também reparou. O livro era O Códex 632 - confesso que tive de ir agora pesquisar, já não me lembrava do título. A acção decorre nos primeiros meses de 2000, e o herói vai a Nova Iorque, onde lhe fazem uma proposta de trabalho milionária, que ele transforma mentalmente em não sei quantos contos e não sei quantos milhares de euros. O facto não deixa de ser notável, porque o euro só substituiu o escudo em Janeiro de 2002, e em 2000 ainda não se conhecia sequer a paridade. Não é assombroso? JRS é um pequeno génio.

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  9. e esta? "A disputa pela influência da Ucrânia atingiu níveis retóricos que recordam a Guerra Fria"
    em http://www.publico.pt/mundo/noticia/divulgacao-de-conversa-sobre-a-ucrania-embaraca-eua-1622760

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  10. ah, pensei melhor: pensava que não fazia sentido, que deveria ser "níveis históricos", mas já percebi que querem dizer que a "retórica" atingiu níveis que lembram a guerra fria (estava a complicar)

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